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5 de novembro de 2019
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10:26

Coringa

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Coringa
Coringa
Coringa (Divulgação)

Gerson Smiech Pinho (*)

No baralho de cartas, em meio a reis, rainhas e valetes, o Coringa é retratado pela bem-humorada e irrequieta imagem de um bobo da corte. Sem aderir a um naipe específico, esta figura de aspecto errante pode circular em todas as posições, substituir qualquer carta e modificar completamente o destino de um jogo. Por se tratar de um elemento sem posicionamento fixo, ter um Coringa nas mãos abre inúmeras possibilidades durante uma partida.

As narrativas históricas e literárias comumente associam a imagem do bobo da corte a uma pessoa com deformidades físicas ou possuidora de uma subjetividade descentrada, estranha à comunidade, que suscita um misto de riso e aversão. Ao mesmo tempo que tal personagem evoca uma aparente ingenuidade, seus gestos e comentários costumavam dirigir um radical questionamento às figuras de autoridade. Daí, sua capacidade de subverter e alterar posições previamente instituídas. Por não ser um integrante da nobreza nem seguir participando de seu contexto de origem, o bobo da corte movia-se pelo campo social como o coringa de um baralho – podia ser descartado sem maiores consequências por não ter lugar definido, mas nem por isso deixava de instaurar uma enorme diferença quando se fazia presente.

O antagonismo entre ser descartado ou marcar presença no contexto em que vive, mesmo que de forma violenta, alinhava os vetores que compõem a existência de Arthur Fleck, protagonista do filme Coringa, de Todd Phillips. Em meio à multidão de Gotham City, o personagem se esforça em vão por tecer alguns fios que o conectem à ríspida realidade que o cerca, seja em seu trabalho como palhaço, seja na busca por acolhimento junto à assistência social ou, ainda, nos encontros fortuitos com uma vizinha. Atrelado à fragilidade psíquica de sua mãe e à procura fracassada por um pai, Arthur padece de uma profunda carência de um lugar para si. “Durante toda a minha vida, eu nem sabia se eu realmente existia, mas eu existo, sim”, diz ele a certa altura da trama. O ofício de palhaço ou humorista proporciona alguma experiência de reconhecimento, ainda que de modo fugaz e transitório.

Mesmo que Arthur Fleck se esforçasse por fazer uso do riso e da alegria na ocupação que buscava construir para si, é em outro âmbito que seu comportamento passa a produzir consequências mais significativas. Portador de um transtorno que o faz rir imprevistamente, em qualquer momento ou lugar, o personagem encontra-se com a intolerância em relação a seus sintomas e com a violência gerada por ela. No caderno em que registra suas piadas e ideias, escreve: “A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não a tivesse”. Tal enunciado revela o mal-estar que se agrega ao sofrimento já presente em sua condição.

Além de produzir prazer e divertimento, palhaços ou comediantes são capazes de expor mazelas e conflitos não reconhecidos pela sociedade, revelados por meio do riso e do humor. Se os palhaços são pródigos em revelar o absurdo através dos jogos de palavras e dos tropeços nos gestos, o personagem-título de Coringa não deixa de cumprir essa função para aqueles que assistem o filme, ainda que por um caminho diverso – enquanto sujeito errante, sem lugar definido, cujo comportamento claudica em encontrar uma forma para se representar no campo social.

Situado no limiar entre o vilão e o herói, o atual Coringa toma alguma distância do caricato malfeitor que habitava a clássica série de televisão dos anos 60, protagonizada por Batman, o homem-morcego. O personagem que hoje se movimenta nas telas desfaz qualquer tentativa de dividir o universo entre o bem e o mal. Ao desvelar a faceta frágil e humana do personagem, o filme apresenta ao público algumas das posições que ordenam a distribuição das cartas que jogamos e que nos jogam na realidade que nos cabe habitar.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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