Colunas>Coluna APPOA
|
19 de novembro de 2019
|
10:37

“A imagem queima” 

Por
Sul 21
[email protected]

Lucia Serrano Pereira (*)

Terminada a temporada da Feira do Livro em Porto Alegre (chegamos na 65ª). Publicações e comentários, o que cada um está lendo, o que garimpou, e principalmente os escritos com os achados e as indicações. Me somo ao movimento e venho ao encontro com A imagem queima, de Georges Didi-Huberman. “A imagem queima: ela se inflama e, por sua vez, nos consome”. 

Texto curto e certeiro, reflexão original em torno dessa questão forte de nosso tempo, a imagem. Ele vai na contramão do senso comum e nos diz: as imagens não são imediatas.

Como assim? Não é bem o que costumeiramente achamos, pois no geral a imagem está para nós bastante ligada ao instantâneo, ao momento. Didi-Huberman vai propor quase que um trabalho psíquico, vizinho da associação livre nos sonhos, podemos dizer. 

“A imagem queima”, de Georges Didi-Huberman. (Reprodução)

Parte de que nunca em todos os tempos a imagem se colocou tanto em nosso mundo estético, político, social, cotidiano. A imagem nunca veio tão crua, nunca nos enganou tanto usando nossa credulidade, nunca sofreu tantas censuras e proibições. As imagens, elas são incendiárias. Mas ao mesmo tempo não são tão imediatas quanto parecem, nem tão fáceis de compreender. “Além disso, elas não estão sequer ‘no presente’ como se costuma crer de forma espontânea”. 

Dá o exemplo da fotografia. Não é suficiente ver um álbum de fotografias de época para se compreender aquele tempo, mas se a imagem for criadora, pode tornar visíveis, sensíveis, camadas de tempo que vão para além do presente, enlaçando memória e história.

O que me pareceu original fecundo é o desenvolvimento que vem nessa relação de “leitura”: uma imagem bem olhada é aquela que é capaz de desconcertar,  e depois, de permitir um arranjo novo, renovando nossa linguagem sobre ela. É sobre um tempo no encontro da imagem. Um espaço onde se está sob o impacto, assim como nos encontramos frente a uma obra de arte que nos tira o fôlego, por exemplo e que desorienta, não sabemos o que dizer. Certo mutismo. A saída do filme quando ainda não temos o que falar. Tempo em que se abre uma espécie de fenda, onde somos afetados, implicados.

 “Saber olhar uma imagem seria, de certo modo, saber onde ela queima”: pelo real que ela toca, pelo desejo que ela movimenta, pela intensão que esteve na sua constituição, ou mesmo pela urgência que ela faz pulsar.

Se dispor a essa operação do olhar, tempo, suspensão, desorientação que pinça algo que nos diz respeito, que nos concerne, nos posiciona também mais para perto da dimensão inventiva, do propiciar algo novo. 

Bela ligação entre imagem e linguagem, pois por outro lado, se a imagem nos vem pela via de um uso instrumental, se no seu encontro o que ela produz são clichês em nossa fala, então, podemos considerar também estar diante de um clichê visual. Há imagens e imagens. Diferente as que animam a criação, a abertura do pequeno para o grande, como dizia Cortázar, a partir das fotografias ou dos contos.

Fica aqui sua pergunta: “Que fazer contra essa dupla coação que deseja nos alienar da alternativa de “não ver absolutamente nada” ou de “ver somente os clichês”? Par que aponta de um lado a censura, de outro, o excesso.

Assisti recentemente na Fundação Saramago, em Lisboa, uma leitura dramática de trechos de “Ensaio sobre a cegueira”. Festejei a oportunidade do reencontro com um dos livros que mais me impressionou e que coloca em cheio aquela cegueira luminosa, branca, absolutamente excessiva que Saramago coloca no mesmo território em que violência e barbárie dentro de nosso mundo. Bacurau, O Coringa. Falas e produções onde as imagens queimam.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora