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8 de outubro de 2019
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13:29

Memórias de um racismo velado

Por
Sul 21
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Memórias de um racismo velado
Memórias de um racismo velado
Foto: Ramiro Furquim/Sul21

Volnei Antonio Dassoler (*)

Até minha adolescência, vivi numa pequena cidade no interior gaúcho. A família, de ascendência italiana, falava com orgulho de um lugar que a grande maioria nunca chegou a conhecer. Minha mãe lia em voz alta “Vita e stória de Nanetto Pippeta” e cantava a saudade com “quel bel mazzolin di Fiori”. Assim, transmitia em ato o legado simbólico à nova geração. Apesar da típica vergonha infanto-juvenil, eu compartilhava do interesse pela história e cultura desta origem. As narrativas de tom épico deixavam entrever o contexto trágico e o cômico da aventura imigratória.

Apesar de separados por um oceano, o continente europeu parecia próximo o suficiente para forjar um terreno simbólico comum com os descendentes polacos, alemães, portugueses, espanhóis, ucranianos. Apesar das diferenças, sonhos e decepções eram compartilhados e a “origem” branca era suficiente para acomodar os efeitos do narcisismo das pequenas diferenças. Como pessoa branca, olhava o mundo à volta e tudo parecia estar no seu devido lugar.

O sonho de “ser” alguém me levou para fora das fronteiras daquela pequena cidade e nessa travessia encontrei os “brasileiros”. Brasileiros eram todos aqueles que não dispunham ou de um sobrenome de filiação europeia ou de pele clara. Os negros, sem exceção, eram brasileiros. Para estes, não havia uma origem digna de curiosidade. Como se aqui sempre estivessem, surgidos do nada. Vidas sem história. A história oficial da escravidão foi eficaz em apagar os rastros africanos, quase restos. Se os brancos eram iguais nas suas diferenças culturais, os negros eram iguais pela cor da pele. Os brasileiros negros, demorei a perceber, eram os descendentes dos africanos escravizados. Escravizados, não escravos. A condição de escravidão do negro africano não era uma essência do seu ser, mas uma imposição de violência. “Imigrantes” forçados, cujo tráfico, durante séculos, fez da mão-de-obra negra a principal fonte de produção da riqueza em nosso país, riqueza da qual foram e seguem sendo expropriados. A chegada de imigrantes brancos nos primeiros anos do sec. XIX respondeu ao projeto político de embranquecimento racial da população e da sua força de trabalho.

Em tempos sombrios no Brasil, existem algumas urgências que precisamos enfrentar. O racismo é uma delas e, talvez por isso, vemos o movimento negro assumindo, cada vez mais, o protagonismo de muitas lutas no campo político-social.

O enfrentamento do racismo passa por perceber em que lugar desta trama nos situamos para interpretá-la a partir do contexto histórico e das formas atualizadas em que o mesmo aparece. Isso diz respeito tanto às pessoas negras, estigmatizadas pelo preconceito, quanto às brancas, que o mesmo preconceito alça a uma condição privilegiada. O argumento científico da inexistência de raças, biologicamente falando, pois há apenas uma raça humana, não impede que se faça e se perceba a distinção que ocorre no plano social, visível nas ações cotidianas.

O racismo tem múltiplas expressões. Há aquelas chulas, vulgares, violentas, que fazem doer e que matam. O racismo, nas suas formas mais cruéis e violentas, existe e persiste, como atestam inúmeros estudos e estatísticas dos mapas da violência em nosso país (para aqueles que ainda precisam da prova científica). Contudo, existem outras formas sutis, silenciosas e quase inadvertidas, que, no entanto, começam a fazer fissura quando negras e negros passam a ocupar lugares cujo acesso antes era restrito como um privilégio das pessoas brancas.

Há uma história do negro no Brasil de que os brancos não sabem e, de certa forma, urge desejar saber. Uma vertigem há de se produzir nesse encontro em que a pessoa branca se deixa interrogar sobre os privilégios que obteve na vida simplesmente por corresponder ao padrão branco identificado como universal. Foram esses encontros, ao longo da vida, que fizeram me perguntar: como é ser branco? O que me é permitido almejar e, a outros não, pelo simples fato de ser branco nas condições atuais?

A belíssima canção do folclore dos imigrantes italianos Mérica, Mérica sintetiza a epopeia das imigrações brancas em nosso país. Seus versos cantam a emoção da partida e a expectativa (cossa sará?) em direção à desconhecida América. Levavam consigo a honra (siamo partiti col nostro onore) para o novo mundo. A esperança é o acalanto de qualquer utopia migratória, e o longo tempo da travessia atlântica em navio a vapor ajudava a imaginar o destino como um lindo ramalhete de flores (um bel mazzolino di fior). Navios Negreiros, de Castro Alves, é a versão poema da diáspora africana. Entre dois infinitos, o céu e o mar, navega o barco. E o que se ouve e se vê? “Um canto fúnebre…. tétricas figuras! Que cena infame e vil…!! Meu Deus! Meu Deus! Que horror!” Porão desumano! Açoites e correntes. O martírio dos corpos negros se faz sob o auriverde pendão da minha terra, chora o poeta. O que foi feito da promessa de esperança que ela, nossa bandeira verde amarela, encerra no seu tremular?

(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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