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22 de outubro de 2019
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10:30

Christine Renon: uma vida em protesto

Por
Sul 21
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Homenagem a Christine Renon na frente de sua escola (Reprodução/Youtube)

Alfredo Gil (*)

« Hoje, sábado, apenas três semanas após o retorno às aulas, me acordei terrivelmente exausta, esgotada ».

Assim inicia a carta redigida por Christine Renon, 58 anos, diretora há trinta anos em uma escola pública para crianças de 3 a 5 anos em zona periférica de Paris. Foi num sábado, dia 21 do mês passado, que ela decidiu se suicidar no hall da escola, quando esta encontrava-se fechada. Junto ao seu corpo foi encontrada a carta em questão, cuja cópia ela enviara a vários diretores de escola do mesmo setor, às instâncias de inspeção do Ministério da Educação e aos sindicatos. Em papel oficial da academia de Ensino, ela justifica seu ato. Ela o reivindica outorgando-lhe, assim, um valor político.

Apreciada pela sua ampla dedicação, por colegas, pais de alunos e pelas crianças, Christine Renon descreve, em três páginas, o acúmulo cada vez maior de deveres a serem cumpridos, com menos recursos materiais e humanos. Assim, proliferam-se as tarefas burocráticas que devem ser executadas num automatismo de repetição que esvaziou a ação profissional de seu sentido. Essa situação vem se agravando ao longo dos anos, com as inumeráveis reformas dos sucessivos governos: « reformas incessantes, tarefas cronofágicas e o acúmulo de todos estes « pequenos nadas » que ocupam 200 % de nosso dia », lemos na sua carta.

De fato, assiste-se nos últimos 20 anos ao desenvolvimento de uma máquina kafkaniana que tem reduzido o trabalho criativo, responsável e elaborado a partir de trocas entre pares, em execução de tarefas protocolares, desumanizadas, concebidas nos escritórios de tecnocratas que ignoram o terreno. A protocolização do trabalho tem objetalizado cada vez mais seu agente, mumificando, por consequência, o sentido da vida profissional. A dita máquina, que se instalou e se disseminou em diferentes âmbitos da vida social, tem sido incrementada tanto pelas políticas de esquerda como de direita, de maneira intensiva e sistemática na França. Trata-se de uma política que se funde e se confunde cada vez mais com uma lógica de gestão empresarial, “new manegement” (novo gerenciamento), que, quando aplicada à educação e à saúde, por exemplo, causa os estragos que temos conhecido na França nos últimos anos, acompanhado de um sentimento profundo, repito, de esvaziamento do sentido da ação profissional.

Entre as várias reações comoventes, podemos ler a de um professor do ensino médio e universitário que reage ao ato dramático da diretora criticando « a aceleração vertiginosa do neoliberalismo que repousa na avidez de números e eficácia». Neste mesmo sentido, um coletivo de diretores, ao homenagear a colega, denuncia a degradação progressiva das condições de trabalho e acusa a política ministerial de ser « uma instituição obcecada pela medida e pelo controle, que sufoca os diretores com tarefas administrativas, sem lhes permitir o desenvolvimento de seus projetos escolares ».

A diretora de uma escola, situada na mesma cidade onde trabalhava Christine Renon, deplora o « empilhamento de deveres burocráticos, nos limites do absurdo: um relatório que não serve para nada, de quatro a cinco páginas, tem que ser redigido a cada vez que um aluno falta mais de 2,5 dias de aula. Uma vez registrei uma criança que tinha faltado 49 dias: nada aconteceu ».

A carta de Christine Renon termina com o relato de uma série de obrigações ditadas pelas instâncias superiores e que a teriam projetado numa posição de total desamparo. Fatal. Iniciando cada frase por « A perspectiva de… » seguida de uma exigência, a diretora revela o que foi a gota d’água, uma demanda impossível de executar. « A perspectiva de ter que convocar uma família para informar que seu filho era acusado de ter colocado o dedo no ânus do coleguinha (os dois com três anos de idade) mesmo se tivéssemos certeza que ele não o havia feito, foi a gota d’água que pela manhã me devastou. IMPOSSÍVEL! ». Temos aqui um exemplo eloqüente em que a execução da regra predomina sobre o bom senso e a experiência dos responsáveis da instituição.

Ao final da carta, em que assina como « Diretora esgotada » e pede o reconhecimento do seu sofrimento, o tom não é de vitimização. Seu suicídio não pode ser considerado como simples escapatória da realidade hostil com a qual se recusa a colaborar. Há sobretudo algo de heroico no seu ato, que se realiza pelo sacrifício último da sua própria vida. Ela se dá a morte em nome da vida. Talvez tenha se tornado raro na nossa sociedade entregar a vida como oferenda em nome de um Bem Supremo, de um Bem comum. Testemunhos de diretores e profissionais da educação afirmaram que sua carta botou palavras nos seus cotidianos. Ou seja, implicitamente, a partir do momento em que o cotidiano das pessoas esvazia-se de suas substâncias, as palavras tornam-se um barulho de fundo desprovido de significação. Que as palavras da diretora devolvam os contornos do cotidiano: é seu ato que tenta, desesperada mas dignamente, devolver seu valor, talvez perdido para muitos atualmente.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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