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1 de outubro de 2019
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10:51

A resistência no Belo

Por
Sul 21
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A resistência no Belo
A resistência no Belo
“Criação”, de Diego Rivera (1922-1923) (Reprodução)

Maria Ângela Bulhões (*)

Já faz tempo, observo em mim um fenômeno que inicialmente considerei estranho. Chego às lágrimas diante de cenas que me produzem profunda emoção pela beleza que expressam. Estranho, porque antes chorava em situações nas quais era tomada pela tristeza. E hoje isto parece mais difícil.

Lembro da primeira vez em que essa situação me causou verdadeira surpresa. Eu estava na escola de meus filhos e assistia a uma apresentação de teatro feita pelos adolescentes (da qual meus filhos não faziam parte). Comecei a chorar devagar, verdadeiramente emocionada com aquela cena, mas sem relacionar esse fato com o tema da apresentação.

Seguindo meus pensamentos e sentimentos, descobri que isso estava acontecendo pelo fato de estar assistindo aqueles jovens tão cheios de vida no olhar, tão animados e alegres, realizando a encenação e imprimindo em meu espírito verdadeira esperança no futuro.

Considerei que, ali, eu vivia um contraponto ao que acontecia em meu cotidiano no Hospital Psiquiátrico São Pedro. No Hospital, a dor e o sofrimento se apresentavam apagando olhares de forma mortífera. Percebi que as situações de sofrimento já não me faziam mais chorar, mesmo que, por dentro, eu ainda as sentisse de maneira muito forte. Mas a forma de expressão de minhas emoções estava transmutada.

Hoje consigo entender o motivo das lágrimas que não se contêm frente ao que considero belo. Chamo de belo tudo o que pode me emocionar e que, indo além do valor estético, toca no que considero o valor humano. Já as situações tristes eu as vivo de forma bem mais silenciosa, com lágrimas que nem correm mais.

Estou voltando de férias do México encantada com o que encontrei por lá. Um país belo, cheio de história e cultura. Fiquei impressionada com o orgulho dos mexicanos em relação a seu país e como podemos perceber esse sentimento nas conversas de rua.

A história pré-hispânica, que é belíssima, está espalhada por muitos espaços da cidade, além de poder ser vista nos museus e no colorido do artesanato. A arte e a história de Frida Kahlo são emocionantes na sua casa Azul e os painéis de Diego Rivera são imperdíveis. Amei tudo o que vi por lá e, sem nenhuma dúvida, recomendo a visita à cidade do México.

Em viagens, as visitas aos museus, que permitem um mergulho na história e cultura do país, sempre me impressionaram e, algumas vezes, me levaram a um certo mal-estar diante dos registros das guerras travadas. Sei que a história é contada pela óptica do vencedor, que as lutas aconteceram pela disputa de poder e às custas do sofrimento do povo que foi submetido.

No museu, os artefatos de guerra estão expostos ao lado de produções de arte que fizeram parte daquela cultura. Nos encontramos diante de objetos que causaram destruição ao lado de outros que emocionam pela beleza.

A visão do horror das guerras e do belo da arte habitando juntos nos espaços dos museus faz lembrar que o homem carrega em si, conjuntamente, a capacidade de amar e de matar.

Tânatos e Eros, como Freud lembrou, travam a luta na alma humana. Podemos considerar o “belo” como uma forma de resistência frente à destruição para a qual estamos capacitados. Nossa cultura e nossas produções artísticas nos mantêm um pouco civilizados.

Nossas produções criativas, simbólicas, produzem laços que nos aproximam, nos quais podemos nos reconhecer humanos. O anseio por construir marcas humanas que possam ser transmitidas às gerações futuras são barreiras que construímos para conter o apelo à violência.

Imagino que esse mecanismo de resistência à violência, que identifico nas produções do que chamo “belo”, já esteja trabalhando em mim. As lágrimas repetidas diante dele acabaram por sinalizar onde encontrar forças para enfrentar o caminho de tantas dores que escuto na clínica. As lágrimas frente ao belo do/no humano sinalizam que, diante do que nos encanta, ficamos desarmados.

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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