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29 de outubro de 2019
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10:41

A orelha da criança e a língua das borboletas

Por
Sul 21
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Cena de “La lengua de las mariposas”, de José Luis Cuerda (Divulgação)

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Si conseguimos que una generación, una sóla generación, crezca libre (…) ya nadie les podrá arrancar nunca la libertad, nadie puede robarles este tesoro.
Manuel Rivas

Don Gregorio instiga a curiosidade de Pardal, seu menor e mais recém-chegado aluno, ao ensinar que a língua das borboletas parece mola de relógio. A criança surpreendida com as revelações quer saber mais. Como algo que não se vê existe, e além disso produz consequências sobre si mesmo e sobre os demais seres? Um processo exitoso de ensino aprendizagem lembra a língua das borboletas. Não é evidente. Sabe-se de seus efeitos. Ora nas perguntas curiosas, às vezes desconcertantes, da criança, e mais tarde nos ecos do pensamento crítico. O que nos afeta colocando em marcha a reflexão. Seres “sensipensantes”, como sugere Manuel Rivas.

Escritor espanhol nascido na Galícia, tem poucos livros traduzidos para o português. A coletânea de contos O que quer de mim, amor? foi publicada pela Tinta Negra Bazar Editorial em 2001. La lengua de las mariposas, Carmiña e Un saxo em la niebla, no texto original, inspiraram o roteiro de Rafael Azcona para o filme espanhol que leva o nome do primeiro dos três contos. Dirigido por José Luiz Cuerda, foi lançado em 1998, e está disponível na Internet.

O roteiro está ambientado em 1936. Prólogo da guerra civil espanhola, cuja vitória dos nacionalistas levou o general Franco ao poder. Picasso tem um papel relevante contra a desmemória desse período. Guernica. Pintada após o massacre da população daquela cidade por bombardeio aéreo. Conta-se que um oficial nazista ao observar a obra teria lhe perguntado: O senhor fez isso? Ao que o pintor respondeu: Não, o senhor. Se condiz com fato pouco importa. Não desfaz que o cumprimento da ordem pôs fim, de um só golpe, à promessa de incontáveis virtuosas orelhas. Interessava-lhes provar eficácia da nova estratégia de guerra. Reiterada, e reiteradas vezes nos anos seguintes.

Eleger inimigo. Impor silêncio pelo binômio medo violência. Suprimir a educação plural e humanista das escolas. Queimar livros de escritores, dito malditos, proscritos. Controlar as narrativas. Todos estratagemas replicados pelos diferentes regimes fascistas da história da humanidade. Evocam o espírito que animou o ato de um inquisidor chegado à América andina. Indagado porque mandara cortar a orelha de uma criança, vociferou: Não era dócil ao império de minha voz.

Com delicadeza, sem condescendência, Rivas leva o leitor a refletir sobre os conflitos morais dos personagens num tecido social que flerta com uma ruptura radical. Dois polos inconciliáveis por princípios. Os defensores da liberdade de pensamento como força motriz para uma existência minimamente satisfatória para todos, utopistas representados por Don Gregorio, professor republicano; e os adeptos da homogenização das ideias e dos ideais, todos os nacionalistas em suas mais variadas cores.

O medo pela própria vida, o amor e o desejo conduzindo a narrativa a um desfecho humano no rés-do-chão. Leitor e personagens amalgamados, afetados pela inquietante pergunta: quais escolhas te seriam possíveis em circunstâncias semelhantes? Rivas provocando o “sensipensar”. Uma pequena história. Vibra como espaço rebelde. Ilumina, tal como um sonho, referências para travessia dos momentos mais hostis do cotidiano.

P.S.: Gratidão aos professores que abrem a orelha da criança pela transmissão do desejo de aprender, quiçá, a poesia na língua das borboletas.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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