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17 de setembro de 2019
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10:35

“Quando, então, se está em casa?”

Por
Sul 21
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“Quando, então, se está em casa?”
“Quando, então, se está em casa?”
“O retorno de Ulisses”, de Giorgio De Chirico (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

À primeira vista parece pergunta óbvia. Mas ao nos aproximarmos vamos encontrando a riqueza e a complexidade. Vale nos ocuparmos dela, afinal, tem tudo a ver com a forma pela qual podemos nos mover na vida e constituir nossos caminhos. O “estar em casa” vem ligado ao lugar desde onde falar, desejar, constituir experiência.

O disparador foi uma reflexão sobre a questão da nostalgia (La nostalgie no original), no livro que leva a interrogação de subtítulo: “quando, então, se está em casa?”. Escrito de Barbara Cassin, filósofa francesa, que nos leva pela mão passando com esta pergunta pela Odisséia de Ulisses, pela travessia da Eneida – a fuga de Tróia até a fundação de Roma, indo até Hanna Arendt e as questões do exílio. Acompanhamos a forma pela qual Arendt leva o “estar em casa” com seu amor pela língua materna, o alemão, que é o que ela carrega junto consigo ao sair da Alemanha nazista, pelos países que cruza, até a chegada aos EUA, e mesmo na vida que estabelece no país de acolhimento.

Estar em casa? Barbara Cassin parte de uma experiência muito pessoal para situar a pergunta narrando o sentimento que vai chamar de uma nostalgia irreprimível, que sente cada vez que está “de volta” na Córsega (de volta como a analogia simples do campo, como um cavalo que se solta em algum trecho de caminho e volta sozinho para o estábulo). Se trata de voltar para essa ilha, estar em casa mas sem que essa seja sua casa no sentido comum de ter sido lá que organizou a vida, ou mesmo de “torrão natal” como em geral pensamos.

Chega na ilha, desce do avião, toma o carro na garagem do aeroporto, na estrada a atenção flutuante no volante, os túneis, as curvas, as frutas e legumes no caminho, os perfumes de pinho, de mimosa, do mar. Como tudo isso pode lhe fazer tanta falta, como pode sentir a tal ponto estar voltando para casa, ela, que é francesa, não tem nenhum antepassado nesta ilha, não viveu ali nem infância ou juventude, nasceu, trabalha e criou seus filhos em uma casa de bairro parisiense…

Nostalgia, ela quer refletir e sonhar com esse termo, que tem a ver com enraizamento e desenraizamento. Porque ama Homero, Ulisses, o mediterrâneo. O mesmo mediterrâneo, podemos pensar, em que hoje as problemáticas que concernem às travessias e às tragédias dos refugiados (desenraizamentos brutais) se apresentam e que constituem uma das grandes questões do nosso tempo.

Barbara Cassin pediu permissão ao governo da Córsega para lá enterrar seu marido, quando ocorreu sua morte, respeitando e seguindo os rituais na ilha, o que lhe foi concedido. O túmulo ainda não estava pronto, preparado, e então ela recebe um telefonema de duas pessoas para dizer que o túmulo de sua família o acolheria. A hospitalidade corsa. Ao mesmo tempo, a ideia de que somos, de alguma forma, hóspedes. Finitude, passagem, trânsitos.

Nostalgia tem a ver com nostos, retorno e algos, dor, sofrimento. A dor do retorno. A palavra foi composta para nomear a nova patologia que despontava no século XVII, na França, para dizer do “mal do país”. Um jovem médico estuda e passa a escrever sobre o estranho caso desses suíços que eram soldados vivendo na França e sofriam, definhavam, eram hospitalizados. Recusavam os remédios, alimentos, e desertavam em lágrimas pelo desejo ardente de rever seu país. Doença estranha e rara ( claro, sentimento que já devia percorrer a humanidade há séculos só que desta vez, com o Iluminismo chegando, o olhar se reposicionava). O caminho de retorno…

Ulisses também, na Odisséia, navega por anos procurando uma via de retorno, sendo talvez o maior representante desta busca nas narrativas da cultura ocidental. Acompanhar seu movimento pode ser também abrir o termo da nostalgia: de um lado Ulisses lidando com uma espécie de vazio que o impede de ficar pelo caminho, que o impulsiona sempre e de novo a partir de onde quer que esteja, movido pelo desejo de retorno à sua Ítaca ( que também é ilha). Um vazio mesclado com lembrança mas também com a miragem da ilha perdida, que vai se fixando.

Ao mesmo tempo, outra vertente – a que acentua o traço do Ulisses aventureiro, nômade, onde o vazio é uma busca, é um relançamento, uma nostalgia aberta, que busca “estar em casa” mais orientado por um “se achar em seu lugar”, como diria Lacan. Isso pode se dar em geografias diferentes, pois tem a ver com outras coordenadas. Implica o acento na direção às formas pelas quais nos posicionamos e nos encontramos como sujeitos, a de como nos encontramos com o outro, no sentido forte, e também a com quais recursos enfrentamos o estar no mundo, na contingência do nosso.

Uma nostalgia não encerrada e sim inquieta, que está na causa da aventura.

Com Ulisses, quando ele consegue por fim retornar à Ítaca, acontece não a comunhão imediata, sonhada, mas sim um surpreendente estranhamento da ilha, ele não sabe onde está, não a reconhece e mesmo não é reconhecido. Em casa, por fim, mas paradoxalmente estrangeiro.

E depois de realizar o tempo de chegada e reconhecimentos, para nossa surpresa, ele vai ficar somente uma noite em Ítaca com Penélope, para logo partir de novo, pois ainda precisa realizar uma tarefa para fazer o acordo com os deuses. É certo que os deuses concederam um tempo estendido àquela noite, ela foi longa. Mas foi uma só, e Ulisses sai novamente para suas andanças. Ele é aquele que quer o caminho de volta, mas também o que faz a vida em seus deslocamentos.

Tudo isto faz pensar nas identificações que nos ancoram, e na alteridade/estrangeiridade que está para cada um de nós. Como disse Freud, não somos senhores em nossa própria casa. Mesmo “estar em casa” implica uma terra estrangeira, e vai fazer diferença se podemos lidar com as divisões, as pluralidades, as diversidades, criar com o outro um comum, diferente do fixar posições essencialistas e pertenças fechadas.

A nostalgia do futuro se apresenta, assim, não como vazio melancólico, pois de todos os modos os caminhos de retorno são impossíveis – não se pode voltar ao mesmo lugar; mas como um vazio que permita criar, fazer novas leituras, religar. Uma nostalgia que possa nos levar a um pensamento que se expanda, mais acolhedor, que permita encontros na alteridade.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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