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10 de setembro de 2019
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10:42

Meus amigos têm estado perplexos

Por
Sul 21
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Meus amigos têm estado perplexos
Meus amigos têm estado perplexos
Reprodução/Youtube

Luciano Mattuella (*)

Eu tinha sete anos quando eclodiu a primeira guerra do Golfo. Aficcionado por videogames, aquelas imagens na televisão produziam em mim uma confusão de assombro e fascínio. Lembro do tom esverdeado da tela, do silvo dos mísseis sobrevoando as aldeias atacadas, da expressão tensa dos repórteres. Enquanto escrevo esta coluna, percebo que foi também durante este período que tive meu primeiro contato mais próximo com o idioma inglês: nos jornais, eu sublinhava com dedos curiosos palavras como Tomahawk e Desert Storm. Talvez também por causa dos jogos de videogame, o inglês sempre soou para mim como uma língua de guerra: preciso, pragmático e direto ao ponto – como um míssil teleguiado. É muito difícil fazer poesia ou filosofar em inglês. O que tornar isso ainda mais necessário: há que se encantar as palavras duras.

Contrastando com aquele esverdeado da televisão, lembro também do marrom-acinzentado das capas dos jornais. Eram fotos do que havia sobrado dos ataques. O enquadre de uma cena de pedras, destroços e poeira. Volta e meia, ao lado das ruínas, o rosto enternecido de alguém que nem sequer conseguia ensaiar o luto por uma casa e uma família destruídas por uma guerra da qual não fazia parte. À época, evidentemente, eu não tinha condições de fazer uma análise sócio-política daquele conflito. A guerra do Golfo tinha, para mim, um efeito antes estético do que intelectual: eram imagens que agitavam o meu corpo e me impactavam de alguma forma impossível de descrever.

Naquela época, eu tinha ganhado de presente um Mega Drive, videogame de altíssima complexidade tecnológica, um salto gigantesco com relação ao meu antigo Atari. Os jogos que antes tinham o mesmo tom esverdeado da guerra agora ganhavam detalhes e cores mais vibrantes. Também daí vinham algumas palavras estrangeiras: aprendi como dizer em inglês “porco-espinho” (hedgehog, como o Sonic), “problema” (trouble, quando alguma peça do carro de Fórmula 1 estragava) e também “alvo” (target).

Esta última palavra vinha de um jogo de guerra cujo título, talvez não por acaso, me falta. Era um jogo em que se pilotava um avião bombardeiro sobrevoando cidades inimigas – em certo momento, surgia na tela a frase: Choose your target! (Escolha o seu alvo!). Aos poucos, fui deixando este jogo de lado – dizia pra mim mesmo que achava difícil e complicado. Hoje, entretanto, penso que isso acontecia por outro motivo: no meu narcisismo infantil, eu sobrepunha as cenas do jogo com aquelas da guerra vista na televisão. Como se eu mesmo estivesse no controle dos aviões que lançavam os mísseis sobre o Kuwait. A possibilidade de ser o produtor daquelas ruínas que via na capa dos jornais me enchia de culpa. Inibido por essa ficcional versão de mim mesmo, deixei o jogo de guerra de lado. Nunca tive pretensão de carreira militar.

Na segunda guerra do Golfo – a chamada Guerra no Iraque – eu já era um tanto mais velho, tinha vinte anos. Curiosamente, a primeira evocação que me surge deste conflito é a fala de Collin Powell, à época secretário de Estado norte-americano, na reunião no Conselho de Segurança da ONU de fevereiro de 2003. Neste encontro, Powell diz ao mundo que os Estados Unidos invadirão o Iraque em busca de “armas de destruição em massa”, reforçando a imagem do país de supostos paladinos da paz e segurança do mundo. Nesta época, havia uma reprodução de Guernica, de Picasso, na sala onde se realizava a reunião. Soube-se que Powell pediu que tal obra fosse tapada com uma cortina azul. A pergunta, claro, era o motivo desta ato. Uma hipótese é de que aquele quadro denunciava graficamente os reais motivos por detrás da operação militar: aproveitar-se da instabilidade provocada por uma eclosão civil para saquear recursos de uma nação. Estamos todos até hoje esperando as provas de existência de artefatos de destruição em massa no Iraque – aliás, houve sim destruição em massa, mas o dedo no gatilho foi americano.

Segunda sobreposições de imagens. Pensemos agora em outra foto: Jair Bolsonaro, recém eleito Presidente do Brasil, vestido de calças e casacos de tactel, chinelos Rider e camisa falsificada do Palmeiras. No seu entorno, os ministros da República – estes sim, de terno, gravata e sapatos lustrosos. Atrás, não a Guernica de Picasso, mas a obra “Os Músicos”, de Di Cavalcanti, artista brasileiro famoso por sua militância comunista.

Aos 36 anos, já não partilho mais da inocência da infância e do otimismo da entrada na vida adulta. Para mim, é flagrante a diferença entre as imagens de Colin Powell e de Bolsonaro: no primeiro, impera o discurso da hipocrisia – o sentido verdadeiro da fala escondido por trás das cortinas que recobrem a Guernica. Na segunda imagem, tudo é explícito, nada é obliterado: a camisa falsificada, a falta de decoro; ao fundo a obra de um comunista ironicamente servindo de fundo a uma foto oficial de um governo cujo lema é a “expulsão dos vermelhos”. A guerra na primeira cena é vendida como o último recurso; na segunda, é de outra ordem: não mais – esperamos – feita com mísseis Tomahawks, mas com decretos e promoção de ódio e censura. Onde havia a hipocrisia, agora nos deparamos com o cinismo: tudo pode ser falso e verdadeiro ao mesmo tempo. Em Bolsonaro vemos uma bem acabada ilustração da política como guerra, da necropolítica, nos termos do filósofo camaronês Achille Mbembe.

Na primeira cena, a de Collin Powell, nós somos “convidados” à interpretação: nos interrogamos pelos motivos de a Guernica ter sido coberta, nos indagamos pelos reais motivos da ofensiva americana. Na segunda, por outro lado, não há outro lugar para aquele que vê a imagem a não ser o de mero espectador: nada ali é escondido, nada é negativado, tudo é dito de forma clara, mesmo a contradição é explícita. Frente a esta foto, não nos resta outra atitude a não ser a imobilidade, como se fôssemos cúmplices de um crime que não planejamos.

Frente a este cenário de guerra, meus amigos e conhecidos têm se dito perplexos.

Freud já dizia, em 1915, que àqueles que não foram para o front de batalha restava a perplexidade, a suspensão em um tempo de espera em que o pior se anuncia o tempo todo. Ao final do dia, a lista dos mortos no rádio. Hoje em dia temos sido alvejados pelos nossos celulares nos notificando os piores absurdos: uma fala do presidente a respeito da aparência de Briggite Marcon, o chicoteamento de um menino em um supermercado de São Paulo, a devastação da Amazonia, a censura de livros na Bienal do Rio de Janeiro, a censura de charges em uma exposição em Porto Alegre, o corte das bolsas de fomento a pesquisas, o governador Witzel desfilando em um tanque de guerra…

As ruínas agora não são as mesmas daquelas capas de jornal da minha infância – elas são os destroços de um Brasil que estava indo no rumo da cidadania e da civilização, do investimento em prol do amplo acesso das minorias às faculdades prestigiadas, um país que tinha por horizonte o respeito aos Direitos Humanos. Estamos vendo erodir um Brasil que prometemos a nós mesmos e aos nossos filhos e netos. Paralisados, parece nos restar apenas a contemplação emudecida do espetáculo pornográfico produzido pela necropolítica de um governo que deseja tão somente a morte. Se anteriormente o objetivo era o lucro e a morte era um efeito colateral, agora se passa o contrário: a morte é o efeito desejado e a acumulação de capital, o que vem a reboque.

Compartilho com amigos a sensação de estarmos sendo convocados a uma posição impossível: ou bem nos desgastamos, tomados de raiva, física e mentalmente com as notícias assombrosas, ou nos alienamos de tudo e nos pegamos sentindo-nos relapsos por termos virado as costas ao desastre que se configura no dia a dia. Impossível encontrar neste cenário um lugar para tocar adiante os projetos, as alegrias comezinhas e os encontros festivos – mas é deste impossível que precisamos nos alimentar.

Sinto saudades daquele menino de sete anos que imaginava ter alguma implicação no massacre que se escancarava à sua frente e se envergonhava de reproduzi-lo, mesmo que em uma passatempo inofensivo. A culpa como uma forma de demandar algum lugar no delito acontecido.

Quem sabe um dia eu ainda consiga novamente reunir meus amigos para jogarmos juntos.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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