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24 de setembro de 2019
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10:30

A atualidade de Tartufo

Por
Sul 21
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A atualidade de Tartufo
A atualidade de Tartufo
Reprodução de edição inglesa de “Tartufo”, de 1739.

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*) 

A comédia de Molière (1640) Tartufo (Tartuffe) é considerada como uma pérola do teatro universal. Sendo um clássico, além de colocar em cena os desejos e impasses da condição humana, ajuda-nos a fazer uma certa leitura da nossa atualidade, especialmente nesse momento do cenário brasileiro em que não podemos assistir inertes a movimentos anti-democráticos que propagam uma apologia ao fascismo, à retrógada fusão entre religião e Estado, e a propagação sistemática de mentiras.

Desde a sua primeira exibição a peça sofreu represálias, sendo censurada pelos devotos religiosos que foram retratados como hipócritas e dissumulados. A personagem Orgon (senhor da casa, principal vítima do impostor), homem influente da sociedade parisiense, defensor severo da manutenção de uma família religiosa, teria ficado fortemente influenciado por um falso devoto que entra na intimidade de sua casa e expõe as mazelas familiares, semeando a discórdia entre os moradores. Tartufo é uma espécie de farsante inescrupuloso que se fazia de religioso para enganar poderosos e obter privilégios. Não vou resumir o enredo, pois vocês irão aproveitar muito mais lendo ou relendo a peça. Desse modo, limito-me a contar que Orgon, apesar de muitos tentarem desmascarar o mentiroso, deixa-se enganar pelo farsante a ponto de comprometer seriamente seus valores, sua família, seus bens e finanças. Atual? Na verdade, sempre será, mesmo porque, as “tartufices” fazem parte da humanidade. Ciente disso, desejo apenas destacar algumas formas de fazer resistência a devastação produzida pelo fundamentalismo propagado por Tartufos que recusam a verdade e buscam apenas instrumentalizar suas vítimas. Embora, nunca podemos esquecer o quanto elas são responsáveis por elegerem seus hipócritas.

Quanto as formas de fazer resistência temos muito a agradecer ao diretor de teatro Bruce Gomlevsky e os atores, Felipe de Barros, Gustavo Damasceno, Gustavo Luz, Nuaj Del fiol, Patricia Callai, Ricardo Lopes, Thiago Guerrante e Yasmin Gomlevsky. O espetáculo teatral “Um tartufo” estreou em setembro de 2018 no teatro Poeirinha, comemorando os dez anos da Companhia de Teatro Esplendor, fundada pelo próprio diretor. Como consta no folder do espetáculo, embora a CIA tenha vencido o edital da prefeitura do Rio para montagem da peça, não recebeu o dinheiro. Entretanto, Bruce, obstinado por manter acessa a chama do sonho de fazer teatro, apesar dos tempos sombrios para a cultura, as artes e tantas outras coisas em nosso país, convida-nos a reagir: “o edital até hoje não foi pago e no final do ano passado, já sem esperanças de receber, reuni essa trupe incomparável de atores com um proposta indecente: estudar o texto de Molière a fundo, investigar como ele dialoga como nossas questões pessoais, políticas e religiosas atuais e realizar um espetáculo fruto dessa investigação, sem data marcada para estrear e sem salário algum, fazendo na raça sem um tostão de patrocínio público, como um grande ato de resistência. Ensaiamos nove meses com todos trabalhando por amor, num ato que se pode chamar de heroico e de muito sacrifício. Em nome de nossa fé inabalável no teatro”.

Bruce dá um testemunho do quanto não podemos sucumbir à barbárie, ao descaso e à ignorância. Ele transpõem obstáculos e mergulha numa pesquisa criteriosa, inspirada em Stanislavsky, (Tartufo teria sido a sua última direção), mestre na arte de sensibilizar os atores a se deixarem tocar pelas ações físicas de cada personagem, os detalhes de cada movimento, a ampla e infinita linguagem corporal, responsável por estabelecer um novo paradigma interpretativo onde o corpo fala, pois suas expressões podem ser lidas, produzem linguagem.

Nessa proposta de Bruce, além dos personagens serem atravessados pela ginga e a corporeidade brasileira, pode-se reconhecer tanto a influência do expressionismo alemão quanto traços do cinema mudo. Mas, certamente, o ineditismo se dá pelo fato de a palavra não estar em primeiro plano, mais do que isso, não será enunciada. Fantástico, ele encena um Tartufo sem fala. Com isso, além de poder ser representado em qualquer país, reforçando a universalidade do clássico, demonstra de forma muito criativa o quanto podemos fazer resistência as cínicas tentativas de censura vigentes no Brasil.

Felipe de Barros, um dos atores da peça que representa Damis (filho de Orgon), ao conceder uma entrevista e falar de seu personagem, dá o tom da intensidade em questão: “fazer um Tartufo me coloca no lugar de superar os meus limites… Damis é impulsivo, mas ao mesmo tempo o impulso dele tem uma justiça, ele enxerga tudo que está acontecendo e tenta mudar isso, embora, ele é tolido pelo pai que está cego e tolido também pelo próprio Tartufo. A grande revolta dele é: pô, olha o que está acontecendo… ele é um jovem que busca justiça dentro da casa porque ama a sua família, então assim, ele vai morrer se for preciso para salvar a família dele”. Pô, olha o que está acontecendo…

Recentemente, essa montagem de Tartufo esteve em cartaz durante a sua segunda temporada no teatro Maison de France, no Rio de Janeiro, verdadeiro sucesso de público e crítica (apenas para citar alguns prêmios: prêmio Shell por melhor figurino, melhor iluminação, prêmio Cesgranrio de melhor figurino, prêmio questão de crítica para Cia Teatro Esplendor, indicação ao prêmio APTR por: direção e figurino…).

Ao escrever esse breve texto fiquei com a expectativa de assistir uma temporada de Tartufo em Porto Alegre, pois seria realmente importante para a cultura, as artes e os movimentos de resistência que ela pudesse ser encenada em diferentes Estados. Fica a dica!

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS. E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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