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13 de agosto de 2019
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16:28

Woodstock – Pais e filhos

Por
Sul 21
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Woodstock – Pais e filhos
Woodstock – Pais e filhos
Reprodução

Robson de Freitas Pereira (*)

Woodstock completa 50 anos nesta semana. Entre os dias 15 e 18 de agosto de 1969, aproximadamente 500 mil pessoas, jovens em sua grande maioria, tornaram realidade a proposta de três dias de paz, amor e música, muita música no palco, nos acampamentos, nos gramados, nas estradas.

Contrariando todas as previsões que prenunciavam uma catástrofe: trânsito caótico (com um  engarrafamento de 30 km), escassez de alimentos, atendimento médico, condições de higiene e uma chuva no sábado que enlameou tudo, as coisas não foram “da lama ao caos”.  Ao contrário, Woodstock foi um acontecimento único e, com o passar do tempo, transformou-se num destes momentos luminosos onde fica marcado na história que “outro mundo é possível”, mesmo por um breve momento. Esta é a função dos eventos que transcendem o tempo cronológico.

O documentário dirigido por Michael Wadleigh e brilhantemente editado pelos jovens Martin Scorcese e Thelma Schoonmaker (aproveitem estes dias e revejam o filme que estará sendo re-exibido em diversas salas), ajudou a montar a narrativa de uma (a)ventura.

Do filme vamos sublinhar apenas alguns aspectos desta rede complexa (lembrando que recém passamos pelo dia dos pais aqui no Brasil): os jovens  influenciando a geração anterior em sua busca por mostrar que as coisas podiam ser diferentes. Mesmo que por vezes, este protagonismo levasse ao confronto antes do reconhecimento. Principalmente nas entrevistas somos levados a ver e ouvir os depoimentos das pessoas envolvidas. Desde os organizadores que em determinado momento decidiram que o festival seria grátis, dada a afluência de gente.

Correram o risco de tomar um enorme prejuízo – salvou-os o filme e os discos. Passando pela população local da pequena Bethel, norte do estado de NY. Nas entrevistas com moradores, todos ou quase todos  pessoas mais velhas, de outra geração, afirmam que os jovens eram educados e pacíficos e a maioria não pareciam estar drogados, como temiam alguns mais exaltados- sempre há. Lembremo-nos que estávamos no final dos anos 60, onde apesar do movimento hippie, de Stonewall (origem do dia do orgulho gay), dos movimentos pela igualdade racial – cuja lei fora sancionada apenas em 1964, a rigidez dos costumes ainda estava vigente e pensar que pessoas pudessem dormir juntos na grama, ficar desnudos e tomar banhos coletivos era um escândalo. Sem falar nos movimentos pacifistas contra a guerra do Vietnã e mesmo contra as ditaduras na America Latina e outras partes do mundo. A violência urbana era real, os conflitos estavam nas ruas. A música popular fazia a crônica dos acontecimentos. Há algum tempo começara a ser assim. Inicialmente veiculadas pelo rádio, logo  passaram a integrar a trilha sonora dos filmes (Easy Rider– Sem destino, é um deles) que tentavam mostrar ou redescobrir uma América dividida pela guerra e pela violência ( Martin Luther King e Robert Kennedy foram assassinados em 68, alguns meses antes de Woodstock).

Richie Havens que abriu o festival, interpretou “Freedom” cantando de improviso; pois havia esgotado seu repertório e pediam para que continuasse até que os outros artistas chegassem ao local. Enquanto trocava a corda do violão, dizia que muito seria escrito sobre aqueles dias, sobre aqueles jovens e o quanto eles haviam conseguido. Mesmo que “sometimes I feel like a motherless child” (as vezes me sinto como uma criança desamparada, subtítulo de Freedom)  conto com meu irmão e cada um se transforma em pais e filhos que se solidarizam.

Naquele momento, o desejo de estar juntos venceu o medo. Os agentes da repressão se transformaram em auxiliares voluntários – a polícia ajudava em vez de reprimir, o exercito enviava alimentos e transportava médicos. Diferentes tribos conviviam pacificamente. Um jovem casal entrevistado dizia que haviam saído da casa dos pais há uns dois anos. Foram morar numa comunidade. Situação difícil para os pais religiosos que achavam que a filha iria para o inferno: pois morava com um rapaz , não pretendia casar e tampouco sabia se iriam continuar juntos depois do festival. Afinal, poderiam encontrar outras pessoas interessantes. Jerry, o rapaz em questão, afirmava que seus pais também ficaram muito surpresos com suas decisões; pois queria buscar suas próprias respostas, fazer seu caminho. Sabia que os valores eram muito diferentes dos pais, mas acreditava que eles teriam sabedoria para um dia aceitar esta diferença sem rancor. Desejo que pareceu captado e sintetizado por um pai voluntário na faxina, em Woodstock, limpando os banheiros químicos coletivos– “tenho um filho aqui, outro no Vietnã. Venho ajudar os garotos e faço com satisfação”.

O diretor disse que começou a filmar como se estivesse numa situação de guerra, também pautado pelos episódios dos Contos de Canterbury. Iniciou com a construção do palco, com as luzes dos faróis e da lua cheia. Terminou  com a desolação do terreno emoldurada pelo blues de Jimi Hendrix. O diretor queria mostrar que aquela reunião também deixou outras marcas. Lixo da nossa civilização que desde então tenta cuidar da terra (todos os movimentos ecológicos e de preservação cresceram a partir dala) e das pessoas, mesmo que por vezes a destrutividade pareça hegemônica. Vale persistir na transmissão de que a vida em comum é um aprendizado constante.

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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