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20 de agosto de 2019
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10:30

Violência individual e participação coletiva

Por
Sul 21
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Violência individual e participação coletiva
Violência individual e participação coletiva
Foto| Elza Fiúza/Agência Brasil

Alfredo Gil (*)

“Quanto mais eu conheço os homens mais aprecio os cachorros”
Erik Satie

Recebi em consulta, há alguns anos, um senhor que iria ser julgado por atos de pedofilia. Os fatos tinham sido estabelecidos. Ele nunca negou seus atos. Mas o procedimento jurídico, na espera do julgamento, impunha um tratamento psicológico.

Ele respondia, sem reticência, às minhas questões, necessárias nestes casos sobretudo para recuperar os acontecimentos e, é claro, para avaliar de que maneira ele assumia as consequências de seus atos. Constrangido e aparentemente envergonhado, explicou que, trabalhando à noite e chegando em casa pela manhã, ia diretamente dormir. Sua mulher cuidava diariamente de três crianças que faziam a sesta no quarto onde ele se encontrava. Foram essas as circunstâncias que permitiram suas passagens ao ato.

Recordo que na época foi particularmente difícil escutá-lo com a distância emocional que se deve. Um fator pessoal é que minhas filhas tinham apenas três e cinco anos e uma voz interior me dizia “e se tivesse sido uma delas”. O outro fator é coletivo, ou seja, a pedofilia tornou-se um escândalo.

Lembremos, no entanto, que o pedófilo passou a ser visto como um monstro somente a partir do final do século 19, com seu apogeu no século passado. O assunto tornou-se tão delicado, que, ao que parece, os historiadores que dedicam-se ao tema devem introduzir seus trabalhos com devidas precauções, afirmando suas reprovações contra tais atos. Constata-se que a evolução moral sobre o abuso sexual contra crianças é diretamente proporcional à importância que elas passam a ter na nossa sociedade, em especial no mundo jurídico, nas políticas de saúde e de proteção à infância, além do lugar central que ela passou a ocupar nas famílias. Logo, o crime pedófilo passou a ser mais condenado na medida em que o estatuto da criança na sociedade moderna sacralizou-se. Por conseguinte, não é fácil escutar adultos que exercem sua sexualidade e poder sobre crianças com um mínimo de distanciamento em relação aos atos que cometeram.

Estas considerações me vieram graças ao documentário sobre Harvey Weinstein realizado por Ursula Macfarlane, em cartaz aqui na França, tratando do abuso de poder (também sexual) deste homem sobre outra pessoa. No caso dele não eram crianças, mas mulheres. O filme relata o talento do produtor cinematográfico mundialmente conhecido e da personalidade deste predador e manipulador que usava e abusava de sua notoriedade para ditar as regras e comprar o silêncio de suas vítimas quando necessário. Pois, durante muitos anos, para elas, a simples ideia de denunciar as violências sexuais cometidas pelo “ Xerife de Hollywood” era inimaginável.

Estas duas situações tão díspares têm no entanto um denominador comum: o abuso e a possessão daquilo que é o coração da intimidade de uma pessoa, a sexualidade, numa situação em que uma criança ou mulher indefesa encontra-se usada como um objeto qualquer.

Por outro lado, devemos nos indagar a respeito da função dos outros, do coletivo, que parece sustentar (mesmo que seja inconscientemente), de uma certa maneira, o funcionamento destas individualidades.

Para meu paciente, o silêncio que se instalou após o relato dos fatos, foi quebrado por um elemento que lhe pareceu importante acrescentar, sem que eu o solicitasse, e que me desconcertou: “Tive um pai alcoolista, que abusava de mim, quando eu era pequeno”. Eu não tinha nem uma razão para duvidar da veracidade de sua fala. O que me desconcertou foi talvez o uso feito de um saber psicológico – que com o tempo tornou-se um lugar-comum – que consiste em afirmar que “repito ativamente a violência que sofri passivamente na minha infância.” Percebe-se como este deslocamento ou transferência se opera do passado se atualizando no presente, e autoriza, assim, o sujeito a abdicar de sua responsabilidade.

Harvey Weinstein, quando o caso explodiu em 2017, segundo o documentário que mencionei, teria decidido se tratar (como se seu mal/mau tivesse cura). Sua violência profissional e violência sexual contra as mulheres eram notórias. Uma jovem jornalista de vinte e quatro anos teria sido enviada pelo seu jornal para entrevistá-lo numa noite de gala, organizada pelo próprio Weinstein, e abordado um tema delicado sobre uma de suas produções cinematográficas. Descontente com a moça, Weinstein começa a berrar em meio aos convidados, insultando-a de vagabunda várias vezes. O namorado dela que tenta protegê-la é arrastado para a rua e coberto de porradas pelo própria estrela hollywoodiana. A cena é amplamente bombardeada pelos flashs e captada pelas câmeras que acompanhavam o evento. Neste momento compreendemos ainda melhor o título do documentário: “O Intocável”. Pois, pasmem, no dia seguinte, não viu-se nenhuma uma única foto, nem leu-se uma única linha sobre o acontecimento, em nenhum jornal ou revista. Ou seja, a violência de Weinstein foi tratada pela imprensa como se nunca tivesse acontecido.

Então, de novo, qual a função, a “participação” e responsabilidade dos outros, do coletivo, em atos graves cometidos por um único indivíduo ? Não podemos ser categóricos, mas o problema é perfeitamente expresso no testemunho de uma das vítimas, através de uma questão fundamental, que aguarda resposta: “que sistema é este que permitiu durante tantos anos tais atrocidades cometidas por uma pessoa ? ”

Deixando o terreno da Psychopathia Sexualis, como dizia o Dr Krafft-Ebing, a questão posta pela vítima do Harvey Weinstein, foi a minha após quatro semanas de férias recentemente no Brasil escutando, a cada dia, as obscenidades e vulgaridades de extrema violência do presidente da República Brasileira. Na verdade, o baíxissimo nível discursivo e as estratégias políticas do presidente me interessam cada vez menos. O que me intriga de fato é o “sistema” que valida e garante seu comportamento. Quem são e a que aspiram as dezenas de milhões de pessoas que garantem sua popularidade e que aderem ao seu discurso?

Elementos psicanalíticos de respostas a estas questões tão difíceis podem ser lidos no último livro da colega e amiga Ana Costa. Ela acaba de nos brindar com “Luz e Tempo. Ato e Repetição” (editora Escuta, 2019) no qual tece, como de costume, com rigor e clareza, diferentes formas e facetas de articulação entre coletivo e indivíduo.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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