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27 de agosto de 2019
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12:59

Aqui até o tempo é lento (*)

Por
Sul 21
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Aqui até o tempo é lento (*)
Aqui até o tempo é lento (*)
Obra sem título, 1989. Fotografia de agosto 2019 durante exposição, Tempo em Suspensão, de Lia do Rio.

Marcia H. de M. Ribeiro (**)

A percepção de aceleração do tempo da vida contemporânea tem sido associada ao achatamento do espaço pelas conexões virtuais imediatas a qualquer ponto do planeta. Espaço, tempo e velocidade. Ternário de física básica. Enquanto escrevo aqui em minha cidade, o celular conectado à rede traz notícias em tempo real sobre cientistas que identificaram o hormônio associado à perda de memória nos acossados pelo Alzheimer; as chamas que não se apagam sozinhas na floresta amazônica queimando vidas há dias; as manifestações em Hong Kong em repúdio à perda das liberdades civis; e sobre o agravamento da lei de migração pelos Estados Unidos na manchete que estampa o olhar perdido das crianças em campos de detenção. O relógio que progride na mesma velocidade desde sua invenção parece contradizer a sensação de aceleração do tempo para uma parcela da população. Qual o tempo que conta numa travessia de vida?

Tempo em suspensão, exposição da artista plástica Lia do Rio, levada no Museu Nacional da República em Brasília, com curadoria de Bené Fontelle, reuniu mais de trinta obras em comemoração aos seus quarenta anos de trabalho. Um percurso dedicado à pesquisa e as representações sobre o tempo, põem em evidência também a trama entre ele e a memória. Sensibilizam o espectador a refletir sobre as temporalidades que regem a existência. Permanência, roda imperfeita; e uma folha de árvore em forma de pupa suspensa num globo de vidro, obra sem título, evocaram experiências de confinamento e as interpretações sobre a temporalidade nessa condição. Tema recorrente para os que trabalham com essa complexa problemática.

Durante alguns anos – o pronome indefinido é escolha deliberada no contexto desse ensaio –  trabalhei inspecionando a execução dos programas socioeducativos de centros de privação de liberdade de adolescentes no país. Nomear a sensação provocada pelo confinamento provisório ao atravessar, sem algemas, os portões, exigiu muitas palavras compartilhadas. Não é prudente cruzar este umbral desacompanhado. A perda de liberdade, ainda que breve e voluntária, incide sem piedade na interpretação sobre a existência e a passagem do tempo. É antítese da percepção de aceleração vigente fora dos muros. Uma hora são muitas. Certeza da expansão do tempo em suspensão durante uma rebelião ou na solidão da cela do isolamento.

A percepção subjetiva do tempo tem íntima associação ao prazer ou desprazer com uma experiência. Breve se um bom encontro acontece, embora os ponteiros do relógio afirmem grande número de horas transcorridas. Longo se o desprazer-sofrimento prepondera, apesar de o relógio contradizer.

Traços justapostos inscritos nas paredes das celas evocam Cronos, o deus grego filicida. São registros dos amanheceres na clausura, e do desejo: menos um dia para o fim. A pena nunca é pra sempre. Apoiados à passagem cronológica do tempo, que se arrasta mais e também quando as regras de segurança se sobrepõem as atividades socioeducativas, os adolescentes permanecem condenados a um reiterado espaço-presente empobrecedor. Um dia a porta abre. E sujeitados a um poder-tempo de decisão de soltura que não lhes pertence, mas que vez ou outra se imaginam senhores.

Dentro dos muros existem profissionais sensíveis em espaços – salas de aula, biblioteca, oficinas de criação artística, cultural, de leitura e escrita, e outros tantos –  consagrados à reflexão, à criação e as manifestações da singularidade. Podem promover vivência aproximativa, pontual e provisória, a momentos de prazer como na vida na rua, dando a necessária ilusão de que o tempo corre.

É inevitável, se falam em rebaixamento da idade penal [1] ou se preconizam ampliação do tempo de reclusão, volto ao tempo das inspeções. Adolescentes submetidos a um regime permanente de sofrimento não podem sair em melhores condições subjetivas do que quando entraram.

Permanência em um tempo de suspensão. Um dos nomes para a angústia do confinamento, porque o tempo que conta depende sempre do lugar do narrador.

(*) Frase de adolescente privado de liberdade.

(**) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA.

[1] Remeto o leitor a ensaio anterior sobre esse tema: Uma nota sobre adolescentes e encarceramento 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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