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30 de julho de 2019
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10:40

Vamos viajar juntos?

Por
Sul 21
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Vamos viajar juntos?
Vamos viajar juntos?
Venice fog gondolas (Pierre Auguste Renoir, 1881)/Reprodução

Maria Ângela Bulhões (*)

Hoje vou tratar sobre o tema das viagens.Viagens de todas as formas; aquelas que fazemos sentados numa cadeira, nos transportando no tempo e no espaço, através do pensamento; aquelas em que nos soltamos na imaginação e viajamos na “batatinha” de forma criativa; as que nos deixam tomados pelo medo, quando imaginamos perigos que nos assombram; e, por fim, as que fazemos através dos meios de transportes tradicionais, avião, trem, ônibus etc. Bem, todas são viagens que nos põe em movimento. Viajar nos exige levantar as âncoras que nos prendem a determinado “lugar” para nos deixarmos levar mais longe.

A letra da música “Felicidade” de Lupicínio nos diz: “o pensamento parece uma coisa a toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar”. Nossas viagens na imaginação, quando voamos no pensamento, podem nos proporcionar momentos de prazer, levando-nos até nossos sonhos e desejos. Isto é, sem controle, essas idéias acontecem quando nos soltamos da razão, e, prazeirosamente, entramos num mundo cheio de fantasias. Outras vezes, podemos embarcar em viagens cheias de medos, pensamentos que sem pedir licença nos assaltam e nos assombram, fazendo parecer reais nossos maiores pesadelos. É aquela “bad trip” . É interessante, depois dessas viagens, inclusive, poder olhar por onde andamos. Nesses momentos, poderemos conhecer um pouco mais de nós mesmos a partir de nosso devaneio. A reflexão sobre nosso sonhar acordado poderá nos esclarecer um pouco mais sobre os caminhos que nossa mente percorre inconscientemente.

As viagens no tempo também são bastante significativas, pois são aquelas que fazemos através das lembranças de nossa história. Músicas e conversas com os amigos da adolescência e infância são especiais para esses momentos. Nosso corpo, tomado no espelho do olhar amigo, vive novamente aquela juventude. E o embalo daquela música que um dia foi a trilha sonora de nossos sonhos nos leva de volta ao passado. Tudo ganha uma incrível dimensão de realidade e parece tão vivo na lembrança! Realmente uma boa dose de nostalgia pode fazer parte desse momento.Temos saudades de nós mesmos, daquele tempo, mesmo que saibamos que não é o caso de querer voltar.

E só uma viagem!

As viagens feitas através dos meios de transportes tradicionais também demandam esforço. Existe um trabalho subjetivo a ser realizado nas viagens “reais”. Mesmo para quem ama conhecer novos lugares, turistar mesmo, viajar implica em sair de uma zona de conforto. Exige, por vezes, falar uma outra língua, decodificar comportamentos de outra cultura, uma série de coisas novas que podem ser excitantes ao mesmo tempo que podem assustar aos menos aventureiros.

Não nos damos conta de como podemos ser apegados ao nosso “lugar” e que os deslocamentos não são assim tão simples. Podemos estar deixando para trás pessoas que amamos e não é incomum fantasias de morte nesses momentos de trânsito. As viagens exigem de nós o exercício da separação e, depois, o movimento do retorno que também precisará ser elaborado. O retorno à “realidade”. Perguntas que podem surgir nesse contexto: será que a viagem será segura? Consigo ir e vir? Não preciso nem comentar sobre aqueles que utilizarão aviões. Afinal, tirar os pés do chão é sempre um exercício de entrega e perda do controle. Minha irmã me disse: “dizem que eu tenho facilidade para viajar. Não sabem o esforço que tenho que fazer!”. Ela tem toda razão, viajar exige esforço psíquico.

É claro que considero que o esforço necessário para essas viagens são recompensados pelas experiências que podemos adquirir no exercício do deslocamento, e por todas as vivências que serão colocadas na bagagem. Para os mais jovens, viajar pode ser mais fácil e atraente, já que envolve a adrenalina e a separação da família, tão ansiada nessa fase. A viagem pode servir de prova de independência, e a aventura pode implicar, inclusive, em tornar-se “outro” num outro lugar. Longe de casa, podemos nos imaginar mais livres, sem tantos compromissos com nossas identidades, deixadas no local de origem.

Por outro lado, a experiência de soltar-se do lugar seguro, a sua casa, pode não trazer somente prazer. Conheço alguém que ficou alguns dias sozinho em outro país, e, quando retornou, estava com labirintite. Nesses dias de turismo solitário, deixava, a cada dia que saia do hotel, o seu endereço e o contato do país de origem, caso não retornasse ao hotel (fantasia de morte). Foi uma experiência forte de solidão, que o deixou um pouco sem chão. Essa soltura encontrou expressão no corpo, perdeu o equilíbrio. Isso não o impediu de querer fazer novas viagens, agora, acompanhado.

Então, comecei dizendo que as viagens nos colocam em movimento, e esses deslocamentos no tempo e no espaço podem produzir aberturas para mudanças. “Mudar o ponto de vista” e “ver de um outro ângulo” são expressões que nos mostram o quanto a mudança de lugar pode ser propiciadora do novo. Enriquecemo-nos através de nossas experiências e é isso o que pode fazer nossa vida ser interessante. O psicanalista Contardo Calligaris sempre defende: “deveríamos nos preocupar em tornar interessante nossa vida de todo dia.Isso implica em ter curiosidade, aventurar-se, arriscar mais, lamentar menos e não se proteger das inevitáveis tristezas.”

Todas as formas de viagens de que tratei aqui, implicam nesse arriscar-se através de novos lugares. Tanto a reflexão sobre as fantasias inconscientes, como os deslocamentos geográficos, leva-nos à descoberta de novos lugares. Se aproveitarmos de forma curiosa nossas incursões por novos espaços, podemos dizer que não retornamos os mesmos de nossas viagens.

Ao longo da escrita dessa coluna, fui me dando conta de que o tema da viagem não surgiu aleatoriamente. Foi o inconsciente falando, já que estou pessoalmente atravessada por uma especial viagem. Minha filha, nos próximos dias, sairá de casa para se tornar uma mulher independente que irá trabalhar em outra cidade do país. Está de malas prontas para embarcar nessa nova aventura no mundo do trabalho. Eu, emocionada, fazendo viagens no tempo e no espaço, separando-me de minha menina para poder acompanhar, agora um pouco mais de longe, a bela mulher que ela se tornou.

Essa coluna dedico à minha filha e a todos que corajosamente ousam produzir deslocamentos em si mesmos.

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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