Marcia H. de M. Ribeiro (*)
Somos sonhados poderia bem ser epígrafe do livro A sociedade dos sonhadores involuntários (2017) de José Eduardo Agualusa. Nascido em Angola, vive na cidade Ilha de Moçambique – patrimônio mundial da humanidade – que também recebeu alcunha Ilha dos poetas por ter e continuar abrigando outros ilustres representantes, como Luiz de Camões e Mia Couto.
Os escritos de Agualusa recebem influência da tradição oral africana, das rodas de contação de histórias repletas de seres mágicos que participam e dão sentido à realidade. Contar em voz alta é a forma mais comum de transmissão do saber em comunidades não leitoras. Incluam-se nessa cota todas as crianças pequenas que escutam nossas histórias para adormecer. Os finais felizes dos contos infanto-juvenis, depois de sucessivas tragédias e crueldades, funcionam também como aposta na capacidade humana para encontrar a melhor solução possível. Nutrem ouvinte e contador de esperança.
Imaginem um mundo no qual três personagens, ditos sonhadores involuntários, compartilham dos sonhos alheios. Hossi, hoteleiro que fora guerrilheiro durante a luta pela independência de Angola, aparece no sonho dos outros como mensageiro. Pode falar a muitos, distintas coisas, numa só noite. Daniel, o jornalista, sonha com a vida “inteira” de pessoas desconhecidas; e Moira, artista plástica moçambicana, fixa na tela imagens do sonho de quem dormiu a seu lado. Suas funções – inspiração, testemunho, registro – e o sentido dos sonhos são grandes enigmas para os personagens, e colocam em movimento um nível da narrativa que só vai se esclarecer – para eles e para o leitor – quando os três enfim estiverem reunidos, e com eles duas camadas da trama.
Não tarda a se revelar para o leitor que sonhos e utopia funcionam ali como sinônimos. A história fantástica é caminho para contar as sofrências histórico-políticas de Angola a partir da independização de Portugal em 1975. É também manifesto pacifista dirigido aos contemporâneos. Uma declaração de crédito na força da palavra para resolução dos conflitos se os oponentes estão, por princípio, sensíveis para considerar o que sofre o outro, colocar-se na pele dele. Não basta empatia. Recuar um passo da linha de frente cria o espaço necessário para o tempo da elaboração, da reflexão antes de concluir e agir. Ou não agir.
“Ofereça a seus filhos um passado melhor”, propõe cinicamente Félix Ventura, personagem de Vendedor de passados (2004), outro romance de Agualusa. Ele vive de criar e vender honoráveis biografias falsas para personalidades públicas recém-abduzidas a funções de poder. A frase e também essas duas histórias podem funcionar como interpretação, que continua fazendo sentido fora da ficção: que passado estamos escrevendo para nossos filhos sonharem?
(*) Psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA.
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