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16 de julho de 2019
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10:34

Meus amigos têm adoecido mais

Por
Sul 21
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Meus amigos têm adoecido mais
Meus amigos têm adoecido mais
Foto: Guilherme Santos/Sul21

 Luciano Mattuella (*)

Têm sido recorrentes os encontros cancelados, as visitas adiadas, os cafés deixados para outro momento, os jantares impedidos. Enfim, não andam fáceis os encontros nos últimos tempos. Mesmo vacinados, temos nos gripado mais, temos sentido a garganta arranhar ao acordarmos, a tosse de súbito nos incomoda, a indisposição febril que há tempos não sentíamos aparece mais uma vez. Pensávamos que tínhamos deixado as infecções e alergias em uma adolescência em que nos aventurávamos mais na noite fria, em que nos sentíamos mais aconchegados fora de casa do que embaixo das cobertas. Parece que agora estamos o tempo todo convalescendo de uma enfermidade que, na verdade, ainda não tem nome.

Tudo bem que este inverno chegou “à vera” nos pampas gaúchos. Tudo bem que nem olhamos a temperatura pela manhã com receio de não sairmos de casa. O inverno veio súbito e rigoroso. Mesmo assim, não recordo de outro ano em que meus amigos – e eu também – estivemos tão adoecidos. Tenho pensando que este inverno nos encontrou mais fragilizados, menos imunizados do que os anteriores.

Gabriel Garcia-Marquez descreve, em O amor nos tempos do cólera, uma peste avassaladora que aflige os homens nas plantações de banana, uma doença especialmente curiosa, uma vez que o único sintoma – ainda que fatal – seja um certeiro orifício do tamanho de um projétil na nuca dos adoentados. Ainda mais curioso, esta enfermidade de etiologia rara afeta especialmente aqueles que se levantam contra os regimes ditatoriais da América Latina. Um tipo bastante específico de doença, portanto. Sazonal, mas não menos mortífera. Um vírus com posições políticas claras, imaginem os leitores!

Nossos organismos são elementos políticos, e não apenas orgânicos. Enquanto corpos, estamos lançados em um discurso que nos dá contornos, que conjuga nossos modos de agir e de nos portarmos. Todo movimento corporal é uma anuência a uma partitura cultural. É com o tecido social que são cozidas nossas primeiras roupas. Neste sentido, penso que o contexto político em que estamos vivendo recai sobre nós também como forma de adoecimento. A imunidade baixa e o organismo ressente os efeitos de um discurso de ódio que nos toma como alvos. Nós damos risada do Pavão Misterioso, das mamadeiras de piroca, da “balbúrdia” dos alunos “alienados” (sic, sick) das universidades federais, da incapacidade do presidente da República de desempenhar o simples gesto de beber água de uma garrafa (procurem o vídeo, é tristemente hilário). Mas nós rimos como forma de aliviar a angústia – não é o mesmo riso das rodas de bar, dos chistes bem colocados, do punchline inesperado. É o riso que mistura desespero e alívio fortuito. Nós temos adoecido desse riso às avessas.

Para não perder a piada: nossos corpos estão sendo hackeados.

Um outro sintoma desse peculiar quadro clínico é a nossa dificuldade de terminar histórias. Compartilho com meus amigos a pilha de livros deixados pela metade, um amontado de narrativas que vão ficando inacabadas na mesa de cabeceira, no chão ao lado da cama, na mesa de trabalho. Este vírus nos faz produzir restos aos quais prometemos retornar “depois que toda essa loucura passar”. A atenção profunda o tempo toda interceptada por um novo absurdo que vai minguar sem o devido impacto, a mais nova violência que será celebrada. O “menino” jogador de futebol é acusado de estupro? Viva a seleção! O presidente libera mais uma dúzia de agrotóxicos? ¡Adiós hermanos! A Amazônia se desfazendo e produzindo um enfisema no mundo? Gol do Brasil!

Talvez essa doença seja, afinal das contas, transmitida pelos canários. Uma cepa nova da gripe aviária.

Estamos na mira – por vezes literalmente – de um discurso que nos quer mortos. “Esses marginais vermelhos serão banidos de nossa pátria”, disse o presidente da República em um dos raros momentos em que conseguiu formular uma frase com sujeito, verbo e predicado. O ódio parece ajudar esse bando de iletrados a conjugar sua linguagem tão desafeita à verdade. Conseguimos a façanha de tomarmos oitenta tiros e não termos morrido de todo – um de nós morreu, entretanto, e então morremos todos um pouco.

No final de semana retrasado ouvimos Galvão Bueno fingindo espanto com a “beleza do povo brasileiro cantando o hino à cappela” no Maracanã. Um hino, uma bandeira e um uniforme que representam cada vez menos de nós. O ingresso custando em torno de quatrocentos reais. Subindo o morro, provavelmente o hino que se ouvia nas capelas era o fúnebre. Quanto será que pagaram pelo caixão? Mas o Brasil vai e dá um show, bota a bola na rede… salve a seleção!

E salvemos-nos a nós mesmos e nossos amigos, que andamos tossindo tanto. Mas há uma esperança: parece que no nordeste do país estão avançados na pesquisa da cura para este mal que nos tem afligido. Consta que é revigorante, neste frio, o conforto do lençóis – maranhenses. O remédio parece estar nas ondas mais perto do Equador – o resto é mar, é tudo que eu não sei contar, para não acabar o texto sem a devida homenagem a João Gilberto.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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