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23 de julho de 2019
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10:30

Dor e Glória – passagens entre os tempos

Por
Sul 21
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Dor e Glória – passagens entre os tempos
Dor e Glória – passagens entre os tempos
Cena de “Dor e Glória”, de Pedro Almodóvar (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

Almodóvar fala da sua experiência filmando “Dor e Glória”. Conversa que vai se desdobrando no início de abril em Madri, para o Cahiers du Cinema já à beira de Cannes, e assim vamos reencontrando alguns lugares concentradores das fortes ressonâncias que o filme produz.

O corpo de Salvador Mallo, o personagem, diretor de cinema, que padece. Entregue à dor, já não filma mais, vive no reduto fora do mundo, que insiste em buscá-lo. Filmar exige grande esforço físico, ele justifica. Salvador já desistiu. Mas a subversão desse estado vai se engendrar e acontecer em direção ao movimento que irrompe, explode, levada pelo fio do desejo – tênue na forma da chegada, e potente na recriação de espaço que vem permeado pelas associações e pelos fragmentos de sua história.

Bela narrativa de Almodóvar sobre a criação das cenas em suas ligações.

De início: a água, a primeira tomada do filme, a superfície quase imóvel, azul, Salvador sentado ao fundo, corpo que flutua rompendo a gravidade, o peso, as dores, momento de apaziguamento da tensão constante, o intervalo, o alívio. A água na superfície da piscina o leva quase fisicamente a uma outra superfície líquida: as margens do rio que corre quando ele, menino, brinca com os peixes ao lado das mulheres que lavam e quaram os lençóis e roupas ao sol. Cena absolutamente luminosa: a mãe e as vizinhas que enquanto lavam, cantam. Quadro quase pintura, a lembrança que tem de sua mãe em raro registro de felicidade. Uma mãe do pós-guerra, dos anos sessenta, lidando na vida com todas as dificuldades daquele contexto.

O entrevistador pontua: o que é belo na passagem entre o passado e o presente é como isso chega, a passagem de um a outro, o como isso desliza entre as temporalidades, um acontecer misterioso, um pouco como a associação livre em psicanálise.

“Eu queria tomar o espectador pela mão e o conduzir sem que ele se desse conta de um lugar e de uma época à outra”, responde Almodóvar.

Sem dúvida isso faz o transporte, o encantamento do filme. Deslizamos sim, de Salvador entregue ao entorpecimento da heroína (como ele diz, tenho dores então vou diretamente ao melhor analgésico que existe), à sacudida que o desperta com a contingência, mão do acaso que faz o reencontro com seu amante das experiências da juventude – e o beijo. Força desse beijo que faz cair o raio, a fulguração do desejo abrindo os seus tempos. A paralisia começa a ruir.

A trama se arma com muitos elementos. A Filmoteca que o chama para a cópia refeita de “Sabor” ( perdido, no momento…), seu filme de 30 anos atrás. O reencontro com o ator com o qual se desentendeu por não ter interpretado o papel como ele, diretor, comandava. A morte da mãe. A encenação de Vício, sua escrita, seu texto, mas que ele não quer assinar. Federico.

E “a carta que chega a seu destino”, desenho de autor desconhecido, reproduzindo um menino lendo, estampado no convite de uma exposição de arte.

Salvador vai ao seu encontro. Reconhece o desenho, esboço no papel de embrulho sujo de cal, é ele o menino retratado. No verso, a carta endereçada para si.

E na retroação lhe vem tudo de uma vez. O primeiro desejo reverbera como achado surpreendente, e que ele “não sabia” até então, com esse saber insabido do inconsciente: Salvador menino púbere, a cena havia se passado em casa nas cuevas manchegas, as casas trogloditas cavadas na rocha onde viviam as comunidades da Espanha pobre, mas que para ele era um espaço quase mágico com aquela luminosidade que vinha de cima, teto aberto, se derramando sobre o espaço.

Era ele, púbere, que ensinava o adolescente pedreiro, pintor, a ler e escrever. O maior, em troca, pintava a casa, prendia os azulejos, fazia os pequenos serviços pautados pela mãe do menino. E também desenhava.

Naquele dia, só os dois na cueva. O rapaz desenha Salvador lendo.

E, terminando a jornada de trabalho, pede licença para banhar-se. Se despe e se banha na tina, justo ali na sala, no ponto em que a luz entra na cueva. O pequeno Salvador o vê, acompanha esse banho com o olhar, e algo algo estranho vai tomando conta de seu corpo, quente, dormente, cada vez mais febril, até desfalecer. Levado para a cama, desde lá segue como olhar em meio à febre. Almodóvar opera de novo a torção. E é Salvador de hoje, podendo se referir a essa série que retorna e se inventa ao mesmo tempo em que se inscreve, podendo voltar a filmar a partir da cena, nomeando o achado: “O primeiro desejo”. O banho e o estado febril que evoca poeticamente a novela de Longo, “Daphnis e Cloé”, primeira novela erótica da literatura ocidental. Banho de Daphnis que literalmente desorienta Cloé, que a adoece e a deixa sem paradeiro no mundo.

Erótica da cena que surpreende o menino. E retroage ainda mais no roteiro desde a mão que conduz a outra mão no traçado das letras, desde o primeiro olhar trocado entre os dois na chegada do menino no povoado, tudo isso sendo e não sendo. “O filme liga desejo e transmissão”, primeiras letras que se intercambiam, ao contrário da ordem esperada: é o menino que ensina o grande, e o insere no mundo com novas possibilidades. Transmissão, erótica, arte, Salvador consegue retomar o fio do desejo e o celebra ao recriar, filmar de novo.

“Como esse personagem que se parece tanto comigo iria sobreviver ao filme, em que estado? Eu não sabia o que iria acontecer a ele, e por vezes me preocupava por ele, porque ele é um pouco eu, você compreende…” declara Almodóvar na entrevista.

Sim, Salvador consegue e atravessa. E a cada vez que se renova a invenção, se passa por este cavo que a Lacan faz evocar a arte em Altamira, outras cavernas de artes inaugurais, outras cuevas, o vazio que é necessário para que se acolha a primeira arte, primeira escrita e cada ato, recriação de nossos espaços.

(ReferênciasL’écran qui acompagne, Neveu-Agero e Tessé, e A coeur ouverte, Chauvin – Cahiers du Cinema maio 2019. Le passé dure longtemps, Lefort – Les inrockuptibles, maio 2019).

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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