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9 de julho de 2019
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10:31

Deslembro

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Sul 21
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Deslembro
Reprodução

Gerson Smiech Pinho (*)

– “Não é lá que se mata e se tortura?” Com esta pergunta endereçada à mãe, a jovem Joana expressa o quanto a perspectiva de retorno ao Brasil produzia inquietação. Após alguns anos de exílio na França durante a ditadura militar brasileira, ao lado da mãe, do padrasto e dos irmãos, a adolescente de dezesseis anos prepara as malas a fim de reencontrar a terra natal. A angústia com a expectativa de regresso se esclarece gradualmente na medida em que transcorre a narrativa de Deslembro, filme da diretora Flávia Castro que se desenrola em 1979 com a promulgação da lei da anistia em nosso país.

O deslocamento de Paris ao Rio de Janeiro não é a única fronteira que o filme atravessa. O cruzamento da infância à vida adulta é abordado com enorme sensibilidade e delicadeza ao retratar a realidade cotidiana de Joana, que transita pela adolescência em meio às primeiras incursões amorosas e as experimentações próprias desse período. Contudo, ao acompanharmos o dia-a-dia da jovem, um outro limiar é progressivamente transposto.  Pouco a pouco, as lembranças de sua tenra infância, vivida em terras brasileiras, revelam o horror que o regime de exceção impôs a ela e a seus parentes. Lampejos de memória abrem o caminho que transportam do presente ao passado esquecido, através de lembranças que conectam a história pessoal de Joana ao trauma coletivo da ditadura.

– “Como você pode ter certeza que ele morreu, se você nem viu?” A pergunta de Joana é inicialmente reportada à mãe e, em seguida, dirigida à avó paterna. Como era possível se certificar que seu pai, desaparecido político, estava realmente morto se seu corpo nunca havia sido encontrado? Quem poderia garantir que ele não teria sido um desses sujeitos que saem para comprar cigarros à noite e nunca mais voltam para casa?  Como concluir o luto pelo pai sequestrado pela ditadura, desaparecido e supostamente morto, sem a existência de um atestado de óbito e sem um corpo para ser velado, sepultado e pranteado? O silenciamento imposto pela situação traumática do desaparecimento impede que uma narrativa sobre o pai e a respeito da infância de Joana tenha condições de se constituir.

A circunstância do desaparecimento desse homem suspende a história tecida entre três gerações de mulheres. A lacuna deixada por ele na vida de Joana, sua mãe e sua avó abre um espaço vazio que as palavras resistem a preencher, já que seu assassinato, executado na clandestinidade de um regime de exceção, não encontra reconhecimento no discurso social vigente.

Enquanto Joana vasculha os vestígios de memórias remotas de sua infância, sua mãe e sua avó preenchem posições bastante distintas. Ao interpelar a mãe sobre suas lembranças, as palavras que encontra são escassas. Frente às perguntas da filha, a reação costumeira é de desconforto e embaraço. Por sua vez, a avó carrega o desejo de preservar a memória do filho morto, bem como se acercar da verdade sobre seu desaparecimento. Em seu apartamento, conserva registros, reportagens e fotos que permitem a Joana conectar-se a sua história.

A narrativa de Deslembro circunda aquilo que é impossível de retratar com exatidão, que só pode ser expresso em fragmentos. De um lado, encontra-se o desaparecimento do pai, o qual não deixa rastro, corpo ou vestígio. De outro, sobrevém a tenra infância de Joana, seus primeiros anos de vida, sobre os quais o alcance da memória é exíguo e reduzido. Nas lascas de lembranças desse período, emerge o olhar da pequena criança em meio ao tumulto de vozes, habitando o corpo recém inscrito no domínio da linguagem. Nos vestígios das lembranças, algum contorno se produz. A construção de uma história começa a se edificar na borda do trauma que é simultaneamente individual e coletivo.

Quando assistimos a Deslembro, somos transpassados pela experiência da personagem e de suas lembranças. Cada uma delas insere uma nova peça no quebra-cabeças da narrativa cuja montagem acompanhamos. Ao final do filme, o impacto do encontro com a crueza da verdade produz ao mesmo tempo horror e alívio, visto  que agora é passível de ser posta em palavras.

Para seus espectadores, Deslembro pode cumprir uma função semelhante àquela que a avó tem para Joana. Constituir uma ponte que permite o acesso a um passado difícil de assimilar, mas necessário de ser recordado ao invés de esquecido. Em tempos em que uma parcela da população solicita o retorno da ditadura como forma de solução para as dificuldades do país, é fundamental a retomada da memória daqueles que desapareceram, foram torturados e mortos durante o período de exceção. A história de Joana retrata de modo exemplar as consequências na vida de uma pessoa da resistência em reconhecer que tivemos uma ditadura no Brasil. O efeito coletivo desse silenciamento é o momento político que atravessamos agora. O filme é a expressão de um trauma compartilhado e que precisa ser rememorado para que possa não ser repetido.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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