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24 de junho de 2019
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10:34

Sexo e amor : quando o ser não sabe o que fazer

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Sul 21
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Sexo e amor : quando o ser não sabe o que fazer
Sexo e amor : quando o ser não sabe o que fazer
Ao final do documentário, uma questão se impõe: o que une dois seres ou mais? (Reprodução)

Alfredo Gil (*)

Assisti recentemente a um documentário intitulado “Japão, o sexo e o amor em crise” . Descobrimos ao longo do programa diferentes situações relatando as relações afetivas dos japoneses, ao final do qual uma questão elementar se impõe: o que une dois seres, ou mais ? O que une um sujeito a seu objeto?

Segue um recorte de algumas delas. Uma jovem curte sua tarde com seu namorado de aluguel, por um valor de 500 reais por duas horas. O serviço inclui uma caminhada de mãos dadas, por vezes abraçados, alguns selfies, além do chat no qual o rapaz tece elogios, afirmando os progressos realizados pela moça, sua cliente, depois do último encontro. Para a pessoa que aspira mais do que um namoro de algumas horas, há uma agência de matrimônio pouco convencional. O serviço é bem mais caro, mas tudo é perfeitamente organizado e orquestrado: o vestido, as decorações, muitas flores, um carrão, várias fotos. O marido é proposto no pacote. Mas, dos mais de cem “casamentos” realizados desde a abertura da agência, há um ano, este tem sido dispensado pelas japonesas, que desejam realizar sozinhas o sonho de ter a experiência do que é estar casada durante um dia.

Podemos também acompanhar um jovem que frequenta o “Café Carinho”, no qual ele pode se isolar, em uma peça, com uma moça que lhe propõe o “menu” com os diferentes serviços: 260 reais somente para se deitar ao lado dela. Mais 35 reais para um abraço de 3 minutos. Conte um suplemento de 70 reais caso queira repousar sua cabeça nas suas pernas. O rapaz se diz contente, mas acrescenta que “as moças” em 3D são legais também. Depois, assistimos um senhor com suas duas companheiras, Saori e Megmi, duas bonecas infláveis, a quem ele dedica tanta atenção que sua esposa parece sofrer com a rivalidade: passeio no parque, fotos, mesmo as festas de aniversários são comemoradas.

Junto a estas práticas que têm florescido no mundo nipônico, lêem-se alguns dados interessantes. Em 2014, 65 % das mulheres entre 16 e 19 anos afirmam não sentirem falta de qualquer forma de contato físico, menos ainda sexual, sendo capazes mesmo de repudiarem a idéia. 50 % de jovens, homens, dizem não terem vida amorosa e preferem o mundo virtual. E 25 % da população, entre 30 e 40 anos, seria virgem. Os demógrafos começam a se preocupar seriamente com a redução drástica da população japonesa.

Volto para a questão inicial, o que me carrega, me leva, me amarra ao outro? De fato, os dois termos presentes no título do programa que citei – sexo e amor – são, de modo geral, as matérias-primas que nos impulsionam em direção ao outro. A ubiquidade do caráter sexual na nossa existência é bastante conhecida, razão pela qual Freud afirmará que ele é “polimorfo”, pois a pulsão pode encontrar satisfação no corpo – de si mesmo e do outro -, por vezes em partes seletivas do corpo, além do fato de que vários outros objetos também podem encarnar o alvo da pulsão, donde a designação da sexualidade infantil, por Freud, como “perversa polimorfa”.

Nas primeiras traduções do conceito de pulsão para o inglês escolheu-se a palavra “instinto”. Sabemos que uma tal escolha é redutora e achata a complexidade deste conceito. O único mérito desta tradução era de conservar algo, que se encontra em Freud, relativo a uma distinção entre desejo sexual e amor, ou seja, quando deseja-se sexualmente coloca-se (psiquicamente) entre parênteses o objeto de amor afim de preservá-lo da animalidade própria à relação sexual. Em outros termos, se a ternura amorosa desabrocha nas fontes maternais, ela pode brochar o ímpeto sexual. Conclui-se que os elementos que compõem a união do ato sexual não são os mesmos da união amorosa.

Eles não são antinômicos, mas sobretudo não são vividos concomitantemente. A melhor fórmula foi a do dramaturgo Philippe Caubère, em 2011, contestando a política higienista do Estado francês, que pretendia punir prostitutas(os) e seus clientes. O ator escreveu em defesa da relação (sexual) venal, afirmando que ela é a única verdadeiramente gratuita. Pois, não somente permite satisfazer um aspecto do desejo sexual, como também pode evitar os restos do encontro que podem vir à tona no dia seguinte por meio de ligações telefônicas e mensagens, que reinvestiriam o prazer e que insinuariam intenções não incluídas no serviço prestado. Ou seja, amor custa caro ao coração e a vida. O dinheiro nos protegeria e nos colocaria ao abrigo contra os tumultos das paixões.

Mas um dos aspectos salientes neste programa, independentemente de considerações maiores sobre as particularidades da cultura japonesa as quais atravessam as diferentes situações relatadas, é a preponderância da necessidade de uma experiência para aprender como fazer para encontrar o outro: o que devo fazer para encontrar o outro? Como é receber carinhos? Como é ter um namorado? O que devo fazer para estar em adequação com o outro? “Deixe-me treinar contigo para, quando encontrar a pessoa de verdade, estar preparado e saber o que fazer”. Digamos que tanto o amor como o sexo parecem reduzidos a uma aquisição cuja prática se acessa pela aprendizagem.

Na cultura dita ocidental encontramos pontos de contato com a nipônica no que se refere à dificuldade em encontrar respostas para os modos de agir ou em pensar sobre nossa conduta, nosso comportamento, seja ele sexual ou amoroso. Algumas pessoas parecem não encontrar mais em si mesmas, inclusive nos atos mais íntimos, o que fazer com o outro. Então chamamos o coach que nos ensinará as boas regras do encontro, como ser amante, marido, pai, etc. Talvez esteja bem aí uma mudança paradigmática do nosso mundo contemporâneo, ou seja, um excesso que nos obriga a fazer algo, enquanto que bastaria estar… junto ao outro. Carência no ser, necessidade de fazer ?

Sofreríamos uma perda das condições imaginárias de nosso ser ? É como se relatássemos a uma criança, que aguarda a cegonha que trará o irmãozinho, o que aconteceu “de verdade” na cama entre papai e mamãe, ou, como se pedíssemos a Flaubert para baixar as calças e verificarmos a sua célebre citação: “Madame Bovary, c’est moi”.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]  

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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