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18 de junho de 2019
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11:06

Leitores- Memórias vivas

Por
Sul 21
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Leitores- Memórias vivas
Leitores- Memórias vivas
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Robson de Freitas Pereira

Vôo Barcelona – Lisboa. Fileira de cinco lugares (3+ 2). Eu trazia um livro sobre nostalgia para ler enquanto me aproximava de Portugal, terra da saudade e do fado e também nossa antiga metrópole. Não por acaso, o subtítulo de meu livro era uma pergunta sobre quando podemos nos sentir “em casa” [1]. Ao meu lado notei que uma jovem lia “Las aventuras de Arthur Gordon Pym”, de Edgard Allan Poe [2]. Edição em espanhol, embora ela tivesse falado comigo em inglês quando chegou e arrumou suas coisas. Ao lado dela, na janela, um jovem lia um livro de Dan Brown (A origem?). Três passageiros da mesma fileira, lendo livros! Já é uma novidade nos dias de hoje. Porém, além disto, ao meu lado esquerdo, do outro lado do corredor, um homem com traços orientais lia “The New Yorker” e sua companheira também lia um livro que infelizmente não consegui ver o título e fiquei com vergonha de fazer a pesquisa diretamente. As cinco pessoas da mesma fileira liam em “suportes de papel”. Fiquei tão surpreso com a descoberta que estou aqui a registrar o facto por escrito nestas mal traçadas linhas. Não sei porque comecei a escrever feito um lusitano aculturado no Brasil.

Puxei conversa com a moça; curioso por ela estar lendo um livro e, justamente, aquele título. Explico: para um psicanalista esta obra de E. A. Poe tem um interesse especial. Foi através de sua leitura que Marie Bonaparte – célebre psicanalista da primeira geração (tirou Freud de Viena e das garras dos nazistas; à custa de muita diplomacia e propina), cunhou o que veio a se intitular de psicobiografia do autor. Ela fez um trabalho de tentar desvendar/interpretar a psicologia de Poe (conhecido por suas idiossincrasias além da genialidade literária) através do texto ficcional. Hoje, ninguém faz este tipo de inferência seriamente. Ao contrário, os psicanalistas utilizam o texto ficcional para acompanhar sua prática e formação e não para aplicar suas teorias, por mais interessantes que elas sejam, a fim de analisar autores através de seus personagens. A favor de Bonaparte, podemos atribuir a empreitada ao entusiasmo dos primeiros analistas, com as possibilidades de contribuir para nossa cultura, via psicanálise.

Mas voltemos ao diálogo com a moça que é o que mais nos interessa aqui. Comecei indagando o porquê daquele livro. “Meu irmão mais velho gosta de ler e tinha este livro na estante. Já tinha lido contos de Poe e resolvi trazer este para minha viagem. Depois de um início um pouco difícil, porque não entendo nada de navegação e termos marítimos, consegui ir adiante”. A partir daí nossa conversa derivou para associações entre a viagem e literatura. Lembrei: ainda bem que não começou com Moby Dick, com suas centenas de epígrafes sobre baleias e a descrição minuciosa do cotidiano dos marinheiros em terra e no mar. Depois de uma observação de que Poe poderia ser considerado uma referencia para Dan Brown e seus textos que parecem ser perfeitos para roteiros de suspense a ação, nossa conversa derivou para ficção científica clássica, entre eles “As crônicas marcianas”, de Ray Bradbury. Nossas preferencias variavam: ela gostava mais do conto da chegada das naves em Marte e eu, do Piquenique de um milhão de anos. Minha interlocutora tinha 20 anos, natural da cidade do México, viajava sozinha em sua primeira incursão pela Europa. Visitou uma tia na Alemanha e agora ia para Amsterdam e depois Paris. Grande viagem, linda experiência, acompanhada pelos livros.

Estes jovens aventureiros e suas ficções maravilhosas, nos surpreendem e nos fazem relançar a aposta. Numa mar de gente fixada nas telinhas de seus smartphones, tablets e notebooks pode haver uma linha onde as pessoas leiam livros. Não sou saudosista, tampouco ludista moderno. Passo boa parte do meu tempo ocupado com alguma tela (agora mesmo enquanto escrevo). Acredito que nossa vida, nossa escuta, depende do espaço que mantivermos aberto para os fatos inusitados da realidade. Acontece que em determinados momentos, o “espírito do tempo” parece se fechar numa hegemonia de violência, vulgaridade e desvalorização da palavra. É aí que a ficção, junto com as outras artes tornam-se imprescindíveis. Não só como resistência, mas como invenção permanente, de fazer do detalhe, do traço, o sinal de que algo novo é possível. Daí estas “epifanias do bem” – o encontro com uma fileira de leitores, mostrar que mesmo uma conversa de viagem breve, evanescente pode arejar o solo de nosso espírito.

No último trecho do retorno – Lisboa- Poa, meu companheiro de viagem lia Moby Dick. Depois , para variar um pouco, foi assistir Aquaman na telinha.

Notas

[1]La Nostalgie – quando donc est-on chez soi?”. Barbara Cassin. Ed. Autrement. Paris.2013

[2] Em português temos uma edição bonita com prefácio de Dostoiévski e posfácio de Baudelaire: “A narrativa de A. Gordon Pym”, Cosac&Naify. São Paulo.2002

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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