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4 de junho de 2019
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10:09

Genet, Lacan e a balbúrdia

Por
Sul 21
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Genet, Lacan e a balbúrdia
Genet, Lacan e a balbúrdia
Reprodução/Youtube
No Brasil, a peça de Jean Genet foi encenada pela primeira vez em 1969. (Reprodução/Youtube)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr. (*)

Recentemente reli O balcão de Jean Genet (1910-1986). Trata-se de um autor inclassificável. Reconhecê-lo como escritor, poeta e dramaturgo francês seria insuficiente, apesar de verdadeiro. Por outro lado, ao adjetivá-lo como subversivo, fantástico, controverso e marginal, estaríamos reduzindo a potência libertadora de seu texto. Importa mesmo dizer: O balcão é uma obra-prima, capaz de ampliar as possibilidades de leituras dos sonhos, das fantasias e mazelas humanas.

No Brasil, a peça foi encenada pela primeira vez em dezembro de 1969 pelo o diretor argentino Vitor Garcia, acompanhado do memorável trabalho de cenografia produzida por Ruth Escobar. Certamente foi um feito, deixando suas marcas na cultura cênica brasileira. Mas, além disso, deve-se ressaltar que estávamos nos anos de chumbo, pois em 13 de dezembro de 1968 havia sido decretado no país o AI-5, o famigerado ato institucional responsável por trazer consequências devastadoras à nossa democracia. Tendo em vista o contexto de sua estreia, apesar da navalha da censura, a inteligência do diretor fez a diferença na direção do espetáculo. Reza a lenda o fato de Genet ter vindo ao Brasil para assistir o espetáculo e feito questão de dizer que Vitor Garcia e Ruth Escobar teriam sido responsáveis pela mais bela direção e montagem de sua peça.

Tomado pelos efeitos dessa leitura, logo pensei: quais as contribuições desse clássico para refletir sobre a atualidade? Proponho abrir uma fresta nessa discussão, tomando como referência o olhar que o psicanalista Jacques Lacan recorta desse texto, pois as fantasias e os jogos eróticos colocados em cena na peça, constituem-se como uma espécie de metáfora da sociedade contemporânea.

Mas, do que se trata O balcão? Escrita nos anos 1950, a peça toma como cenário um bordel, ou como refere a sua mantenedora, madame Irma, uma “casa de ilusões”, situada ao redor de um país em verdadeira agitação revolucionária. Neste grande bordel, verdadeiro microcosmos do regime, existem muitos aposentos com diversos aparatos, onde seus clientes encenavam suas performances sexuais. Logo no começo, três cidadãos chegam a casa de ilusões em busca de suas fantasias. Um se deleita ao exibir a roupagem de Bispo, outro a de Juiz e, o terceiro, se transveste de General. Apesar da fragilidade das instâncias de poder face a revolução, os frequentadores encarnam figuras emblemáticas das instituições de qualquer país: a igreja, a justiça e o exército. Além desses três personagens centrais, há o Chefe de Polícia, amante de Irma, e de certa forma, protetor do local.

Seus ilustres clientes não recorriam ao bordel apenas em busca de prazer sexual, pois O balcão irá acolher aqueles “inocentes representantes do povo”, que ali se abrigavam, travestindo-se nas insígnias de poder do Estado (o juiz, responsável por julgar, o general, representante máximo do estrategista de guerra e o bispo que perdoava). Como metáfora do poder institucionalizado, entre reflexão filosófica e discussão política, tudo era encenado para garantir a perpetuação do gozo, pois nada podia colocar em risco a encenação das fantasias perversas, independente dos estampidos das metralhadoras e das mazelas advindas das ruas. Mesmo as instituições estando na berlinda, o imperativo de gozo se impunha face a suposta balbúrdia do lado de fora. Os clientes da casa possuíam a peculiaridade de falar com as prostitutas e elas, por sua vez, pareciam dispor da habilidade para fazê-los acreditarem na verdade de suas encenações.

Enquanto isso, há uma revolução sendo comandada por Roger, um dos principais líderes do movimento e a antiga prostituta do Balcão, Chantal, considerada por muitos como a personificação do espírito revolucionário. Os insurgentes – até então vitoriosos – foram surpreendidos por Irma que, ao saber das conquistas dos revolucionários, decide dar um golpe para conter a revolução. Ao ser informada sobre a morte de muitas autoridades, ela se veste de Rainha e convoca o Bispo, o Juiz e o General a saírem pelas ruas da cidade para convencer o povo que aquelas figuras estão vivas e a revolução é uma farsa. Desmentida, a população acredita e a revolução é vencida.

O psicanalista Jacques Lacan leu em Genet o quanto o desejo está submetido às leis da linguagem. Neste aspecto, O balcão transpõe a ideia corrente do bordel como um simples lugar para desvelar as fantasias sexuais e revela o quanto a perversão pode ser encenada como um espetáculo. Dessa forma, a noção de bordel transcende o aspecto moralista da questão, denunciando assim, a confusão na qual vivemos, justamente porque, o fundamental passa a ser tanto a indiferença em relação ao sofrimento alheio, quanto representar uma espécie de território de gozo encarnado na própria imagem.

Ao abordar O balcão, Lacan está interessado em analisar alguns personagens a partir do gozo do exercício de suas funções: o Chefe de Polícia, o Bispo, o Juiz e o General. Assim, se de um lado tudo acontece no interior do bordel na mais absoluta diversão, do lado de fora, a lei teria se fragilizado a tal ponto que a polícia seria o resto de todo poder.

Atual?

Apesar de o Chefe de Polícia constituir-se como um dos elementos centrais do drama, sobretudo por nele repousar a função da manutenção da ordem, este personagem não parecia implicado em manter o alastramento da revolução. Basta observar a queixa predominante endereçada a sua amante, dona do estabelecimento, a saber, por que ninguém chegava ao bordel e pedia para usar os adornos de Chefe de Polícia? Irma responde: “meu caro, seu cargo não tem a nobreza suficiente para sugerir aos sonhadores uma imagem que sirva de consolo. Por falta de ancestrais ilustres, quem sabe? Não caro amigo… é preciso reconhecer que sua imagem ainda não tem acesso às liturgias do prostíbulo”. Ou seja, a roupa deste representante da lei não portava qualquer insígnia de poder. Isto leva Lacan a se interrogar sobre o que significa gozar com a condição de bispo, de juiz ou de general? Relendo em tempos atuais, com a condição de pastor, ex-juiz ou generais? Como aponta Lacan, vimos exibirem-se o hábito, a toga do juiz e o quepe do general, mas ninguém desejava entrar na pele do Chefe de Polícia para fazer amor. Do ponto de vista psicanalítico, esse parece ser o pivô do drama.

Portanto, se ao chegar ao bordel ninguém pediu para ser Chefe de Polícia seria pela falta de reconhecimento da grandeza desse personagem. O balcão interroga tanto a debilidade em causa no império do gozo, quanto a nossa capacidade de fantasiar e desmentir a realidade. Neste sentido, a perversão pode ser localizada não somente no gozo do uso da própria vestimenta, mas pelo anseio em fazê-la um ideal, uma espécie de fetiche a ser estampado aos olhos alheios.

Qual seria então a relação de O balcão com a nossa atualidade? Aparentemente, nenhuma. Mesmo porque, no grande balcão de ilusões da política brasileira, vendeu-se a impostura de uma fantasia de mito, aliada a dois supostos salvadores, o justiceiro e aquele que, os ditames do mercado, do alto de seu pato amarelo, lança suas ações, fazendo-nos acreditar se tratar de um gênio da economia. Assim, quando o fetiche é encenado a céu aberto como um delírio totalitário, não há necessidade de bordel algum. Em tempos atuais, bordel virou coisa séria, sobretudo porque ninguém iria recorrer a uma “casa de ilusões” e pedir para se transvestir em deseducador do futuro para desmontar às universidades públicas, acabar com a previdência, proliferar a venda de armas, destruir o meio ambiente, se apropriar de terras indígenas, liberar centenas de agrotóxicos, fechar o congresso, extinguir o STF e vender o país… Pelo contrário, as fantasias de pastores, ex-juiz e generais proliferam na esfera pública, transvestidas na roupagem de salvadores da pátria responsáveis por garantir o gozo implacável do divino mercado. Quando se legitima a roupagem de um mito que porta armas, recusa livros, agride estudantes e flerta com as milícias, a balbúrdia passa a ser sustentada pelos agentes do Estado.

Neste balcão, o chefe de polícia também parece destituído de poder, embora fortalecido pelo passaporte da violência, pois pode matar sem prestar contas de seus atos. Alguém gostaria de estar na pela da nossa polícia? Também nessa bordelândia temporária mesmo com a tal “exclusão de licitude”, dificilmente um cliente irá desejar se fantasiar de chefe de polícia. Tá bem que a tolice e a ignorância parece ser o mais evidente neste governo, mas quando o ministro da educação divulga uma nota com o propósito de denunciar professores, alunos e pais, a ilusão que verdadeiramente está em risco é a preservação da democracia.

No final da peça, a dona do bordel demostra o quanto a vida pode ser muito mais ilusória do que se imagina: vou preparar meus trajes e meus salões para amanhã… é preciso voltar para casa onde tudo, não duvidem, será ainda mais falso que aqui…

Ainda em tempo: sempre há esperança quando milhares de estudantes enfrentam a realidade e saem às ruas em defesa da educação e das liberdades, resistindo a essa impostora ilusão mitológica.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social Institucional – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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