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11 de junho de 2019
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10:33

Despertar do pesadelo

Por
Sul 21
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“Reação da população ao ataque aos seus direitos”. (Foto: Sul21)

Sandra Djambolakdjian Torossian (*)

Um dia adormeci, lá por julho de 2015, perto do meu aniversário e algo curioso aconteceu. Dizem que eu só acordei alguns anos depois. Ninguém saber dizer o por quê. Não sofri acidente, nem aconteceu nada especial.

Dormi como em qualquer outro dia, depois de uma rotina intensa de trabalho. Minha memória registra que eu acordei no dia seguinte e segui minhas atividades.

Era um clima próspero nas universidades. Nos últimos anos, muitas novas instituições foram criadas, institutos federais de educação chegaram nas regiões mais abandonadas do país, houve um grande investimento financeiro naquelas áreas, mesmo nas instituições já existentes. O o acesso à educação básica e superior muito melhorou.

O Brasil tinha saído do mapa da fome. Fazia anos que o fantasma da dívida ao FMI não assombrava mais os jornais de todos os dias. A qualidade de vida da população melhorava a cada dia, tanto para os que viviam na pobreza quanto os que viviam na riqueza. Aeroportos, restaurantes, universidades, escolas estavam cheios de pessoas que durante várias gerações não haviam vivenciado a circulação por esses lugares das cidades. Havia problemas, mas as essas conquistas se sobressaíam.

E assim eu continuei vivendo, enquanto dormia.

Acordei querendo seguir minha rotina quando soube que haviam se passado anos.

Na tentativa de recuperar o tempo passado, de atualizar o que não vivi, liguei a TV e vi o novo presidente discursando. Vi que as armas estavam sendo liberadas, diziam que estamos numa grande crise. Vi o país estando novamente subalterno a outros países. O presidente Lula preso.

Soube que tinha acontecido o impeachment. Que se negava a existência da ditadura civil-militar. Que torturadores haviam sido homenageados. Que as pessoas fazem arminhas com a mão. Que todos os avanços para a diminuição da desigualdade racial e social eram contados, agora, como um momento da maior roubalheira do país, com expressões chulas em relação ao presidente que as conduziu. O Brasil estava novamente no mapa da fome.

A Educação vai nos salvar, pensei. Fui pesquisar no youtube, para saber como estava a situação do campo em que trabalho. Vi o novo ministro fazendo uma dancinha com um guarda- chuvas e as manchetes anunciando o seu ataque às universidades. Graves cortes no orçamento e a produção de uma narrativa dizendo que a rotinas das faculdades é de festas e balbúrdia e que as drogas rolam soltas.

Sobre as drogas, vi outro ministro engavetando uma pesquisa realizada por instituição renomada internacionalmente, simplesmente com o argumento de não ser da sua confiança.

Vi tantas outras coisas que na sensação de estar vivendo um abismo quis voltar a dormir.

E então entendi que esses meus anos de adormecimento inexplicados devem ter acontecido pela percepção inconsciente de que o cenário estava de algum modo se modificando. Que apesar das novas conquistas serem boas para todos, nem todos queriam superar as desigualdades. Já que para muitos manter os outros subjugados à pobreza, à miséria, à falta de acesso à educação é fonte de lucro. Um lucro não somente financeiro, porque este não esteve prejudicado, mas o lucro subjetivo da subalternidade.

Não percebem que a subalternidade é do país ao jogo do capital internacional? Todos perdemos com a ignorância produzida.

Felizmente vivo hoje, também um momento de reação. Reação da população ao ataque aos seus direitos. E dói saber que todo este sofrimento é semelhante a um processo de cura, no qual devemos enfrentar nossos piores monstros para poder melhorar.

Lamentavelmente, quando se trata da melhora individual isso cabe numa vida. Mas quando se trata de uma melhora coletiva, há que esperar algumas gerações.

E apesar da tristeza que me invade, tenho a certeza de que a experiência vivida nos anos anteriores a este pesadelo geraram aprendizagens. Muitas também adormecidas, mas que sem dúvida terão seu tempo de despertar.

(*) Psicanalista, membro da Appoa, professora do Instituto de Psicologia/UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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