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28 de maio de 2019
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10:30

O gênio e o louco

Por
Sul 21
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O gênio e o louco
O gênio e o louco

Maria Ângela Bulhões (*)

Mais uma vez, o cinema me inspirou! Sou uma admiradora da sétima arte, como todos já sabem, e considero que existem filmes que nos arrebatam por produzirem belas traduções de temáticas complexas. No meu entender, O gênio e o louco, um filme do diretor Farhad Safinia, conseguiu isso, ao apresentar a história verídica de dois homens que se encontraram em circunstâncias diversas de suas vidas, mas aproximaram-se a partir da paixão comum pelas palavras.

W.C. Minor (Sean Penn) é um personagem paranóico que acabou preso após matar por engano alguém que ele imaginava ser seu perseguidor. James Murray (Mel Gibson) é o gênio, um homem autodidata em línguas, que assume a coordenação da tarefa de publicar o primeiro dicionário da língua inglesa (Oxford) na Inglaterra no século XIX. Neste início, Murray parecia acreditar na possibilidade de encontrar o sentido e a origem de todas as palavras de sua língua. No entanto, ao longo da narrativa, essa missão é reconhecida como impossível, pois os idiomas mantêm-se em constante renovação. Assim sendo, esta tornou-se a tarefa de sua vida. Faço aqui um rasgado elogio à dramaturgia de Sean Penn, que no papel do louco está absolutamente fantástico!

O filme poderia ser considerado lacaniano por diversos motivos. Lacan, no início de sua carreira de psiquiatra, apresentou sua tese sobre uma caso de paranóia. O caso Aimée (amada) abriu as portas transferenciais de Lacan com a psicanálise e ele tomou o caso dela como de paranóia de auto-punição. Aimée, que já apresentava um delírio persecutório fazia algum tempo, acabou cometendo um ato de agressão contra uma atriz famosa de sua época e terminou detida pela polícia. O que se seguiu foi que, num curto período de tempo, seu delírio de perseguição desfez-se. Esse fato chamou atenção dos psiquiatras. Lacan interpretou que Aimée havia buscado realizar esse ato na intenção inconsciente de ser presa e sofrer assim uma punição. Com a prisão, a lei impôs um limite à sua loucura.

Além disso, Lacan foi um psicanalista que refletiu bastante sobre a condição do psicótico buscar nas palavras e no delírio uma forma de amarração. Lacan chegou a considerar a hipótese de que a obra de James Joice, e sua produção de torções e invenções na língua inglesa, pudesse servir de elemento de sustentação para que o escritor não se perdesse em um naufrágio psíquico. Joice realmente estava amalgamado a seus personagens e sua escrita poderia servir de costura de vida.

No filme, o Louco era um médico americano que, durante a guerra, acabou por cometer uma ação violenta contra um homem. Após seu retorno, esse fato produziu grandes tormentos em sua mente. Ele vivia transtornado com o fantasma de seu perseguidor, que voltava à noite para infernizá-lo e cobrá-lo pelo seu mal feito. Nessas circunstâncias, ele acabou assassinando por engano um homem que ele imaginava ser o seu perseguidor. Depois, na prisão, também se culpava por ter matado esse homem, que agora sabia ser apenas uma vítima de sua mente doente.

Freud já nos falava do quanto veteranos de guerra que não sofreram ferimentos físicos acabaram vivendo mais fortemente os sintomas psíquicos da neurose de guerra. Isto quer dizer que: retornar vivo e sem ferimentos de uma guerra pode produzir um sentimento de culpa avassalador e ser impeditivo para o prosseguimento da vida. Os tormentos psíquicos cobram o fato de estarem vivos e inteiros. Defesas auto punitivas podem ser organizadoras psíquicas em muitas neuroses. Podemos crer que a experiência da guerra traz um excesso de dor que a mente humana pode não ser capaz de elaborar. O contato direto com a morte pode simplesmente desorganizar o sentido da vida.

Os protagonistas do filme se aproximaram a partir do momento em que, no presídio, o doutor W.C. Minor recebeu para leitura um livro em que constava o convite de James Murray, para que todos os leitores pudessem participar de sua pesquisa sobre as palavras inglesas. Murray trabalhava buscando o sentido das palavras e também suas etimologias. Minor é tomado por aquele convite e agora passa de perseguido a perseguidor de palavras. Acaba por ser o maior colaborador da primeira etapa desse dicionário, com o trabalho de organizar mais de 10.000 verbetes. Nessa época, ele melhorou bastante de seu sofrimento. Possivelmente porque ele passou de uma posição passiva para uma posição ativa. Agora, ele está atrás de palavras, e essa é sua missão. Sua paixão pelas palavras o está salvando.

O filme também apresenta a dimensão do amor impossível. Num primeiro tempo, é a culpa que o corrói, pelo fato da família do homem assassinado por ele estar passando fome, sem aceitarem sua ajuda. Aos poucos, a esposa daquele homem vai tornando-se mais importante na trama, e uma aproximação entre eles vai acontecendo. No momento em que ela o perdoa, e corresponde ao seu amor, ele desmorona psiquicamente. O impossível do amor o estava mantendo na lucidez.

Ouso considerar que a tarefa impossível de encontrar todas as palavras de uma língua, e também a impossibilidade de ter seu amor correspondido, faziam um anteparo na sua loucura. Um ponto de parada. A psicose não deixa de ser a travessia completamente livre entre o mundo da razão e da desrazão. Não há interdição. A mente humana se organiza a partir da interdição. Muitas vezes, o delírio tenta construir um ponto de limite. Lembremos que nessa época não haviam ainda os remédios antipsicóticos, e apenas as condições de cuidados poderiam dar as pistas do que poderia ajudar na reconstrução de uma mente doente. A busca pelas palavras colocou um ponto de referência naquela mente que estava à deriva. Amar uma mulher que não poderia amá-lo constituiu um impossível. Ele acaba desabando novamente quando o impossível parece tornar-se possível. O que na perspectiva comum poderia ser considerado uma felicidade, para ele era o desmantelamento de todo um sistema de defesa. A mente humana é de uma complexidade fascinante.

O tema da psicose já foi tratado no cinema de diversas formas, mas a força da dramaturgia de Sean Penn e o fato de ser uma história verídica (certamente mais romanceada na ficção), dão um toque especial a esse filme. Considerei oportuno produzir uma reflexão sobre esse enredo, pois ele apresenta alguns elementos importantes na compreensão da reconstrução de uma mente em sofrimento. Quem se interessa por essa temática indico ver o filme.

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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