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21 de maio de 2019
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10:20

Do estranho ao infamiliar

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Sul 21
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Do estranho ao infamiliar
Do estranho ao infamiliar
Divulgação

Lucia Serrano Pereira (*)

“O que deveria ficar oculto e se manifestou”. O estranho, a inquietante estranheza, o estranho-familiar, o sinistro, e tantas outras traduções mundo afora para o Das Unheimliche de Freud, que agora completa 100 anos. Foi escrito em 1919 e é um texto que ressoa em várias direções, daqueles que resistem ao fechamento no tempo, ao esgotamento da leitura, reabrindo a cada vez novos ângulos, por sua riqueza. O que deveria ficar oculto e se manifestou tem a ver com a operação psíquica que produz o sentimento de estranheza – agora podemos dizer o da infamiliaridade. Efeito que irrompe como um desencaixe, pinçada de desorientação.

Para Freud veio mesmo no banal da vida cotidiana. Ele conta que se encontrava em um trem, dormindo à noite, imagino que naquelas pequenas cabines/leito, e acorda de repente com um solavanco – o que faz com que a porta do banheiro se abra de repente, em frente, na sua cabine. Ele levanta meio atordoado, e vê um velho de pijama e gorro; pensa que o velho se enganou de porta, vai fazer o gesto para ajudá-lo e para seu desgosto vê o gesto no espelho. A surpresa, o sobressalto: o velho era ele mesmo. Instante de desorientação, o estou perdido, o desreconhecimento.

Este vai ser um dos fios que o levam a formular o “infamiliar”. Mas tem muitos outros. Do leve instante de mal-estar, até ao arrepio do perigo das mais variadas formas. Mas não qualquer mal-estar, Das Unheimliche implica coisa forte mesmo que fugaz: é angústia mais horror.

O conto O Homem da areia, de E.T.A. Hoffmann, este ser que vem para roubar os olhos das crianças que não querem dormir, é chamado por Freud para veicular o infamiliar. Hoffmann foi um dos grandes autores da linhagem romântica de criação da literatura fantástica que fez na ficção,1815, trabalhar a torção com Freud em outro tempo: o que produz a infamiliaridade tem a ver com o que já transitou na esfera do familiar mas que ressurge como de fora, como aparição. E pior, algo que “quer a nossa perda” como sujeitos. Nos deixar sem autonomia, puros objetos ( já com Lacan).

Vacilação frente a um perigo indecidido e insidioso, que vai inspirar gerações de artistas, escritores, pintores, escritores, cineastas, desde o romantismo até a contemporaneidade. E que trazem os circuitos demoníacos, os autômatos, os vudus, os mortos-vivos, e seu maior representante, a figura terrível e fascinante do duplo. Como O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, O estudante de Praga, de Chamisso, O duplo de Dostoievski, William Wilson, de Edgar Alan Poe. Toda a ficção do roubo da imagem, transfusão da vida que vai para o outro. Ai de quem quer matar o seu duplo, pois ele já aspirou o nosso ser.

Vertentes do Unheimliche, Freud vai desdobrando – quando se desvanecem os limites entre a fantasia e a realidade, quando o que tínhamos por fantástico aparece como real; as práticas da magia, a onipotência das ideias. Na relação com a morte e a aparição dos mortos, espectros, espíritos; com o temor do mau olhado e a inveja; na confusão entre o animado e o inanimado – os bonecos que de repente “despertam”. Com as repetições involuntárias, e o caráter “demoníaco” da repetição inconsciente. O infamiliar é da clínica. E da estética do mal-estar, é da arte.

Do estranho ao infamiliar? Pois sim, recebemos neste aniversário a inovação justamente da tradução do Das Unheimliche freudiano por O infamiliar, realizada por Ernani Chaves e Pedro Tavares, mais uma grande contribuição que se inscreve na coleção das Obras Incompletas de Freud. Eles nos dizem que Freud se apropriou de um termo de uso mais ou menos comum no alemão, faz seu ensaio e o joga de novo na língua, agora com a marca, com o “selo perene” da psicanálise. Nunca mais Das Unheimliche foi o mesmo. “[…] exporta para todas as línguas através das quais a psicanálise se difundiu um significante novo e incômodo, um vocábulo, a rigor, intraduzível”.

Assim, eles vão propor o infamiliar como sua melhor aposta em nossa língua, razões que sustentam em seu excelente texto de abertura. Sim, se pode traduzir, se pode fazer a ousadia de encarar e fazer furo no muro entre as línguas. E ao mesmo tempo o apresentam como uma certa “intradução”. Infamiliar não porque seria a passagem exata, correspondente ponto a ponto com a língua de origem, o alemão, mas porque carrega consigo, ao mesmo tempo, a impossibilidade da tradução perfeita, o forçamento que implica a passagem de uma língua à outra.
O valioso trabalho de tradução/intradução de Pedro e Ernani nos torna muito presente o fato de que lidar com a incompletude permite também um saber-fazer.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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