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7 de maio de 2019
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10:30

A sua vida é uma boa história

Por
Sul 21
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A sua vida é uma boa história
A sua vida é uma boa história
Foto: Guilherme Santos/Sul21

Volnei Antonio Dassoler (*)

Tantos anos de trabalho clínico, em diferentes contextos e com diferentes demandas, me deixaram sensível às mutações das narrativas sobre a experiência subjetiva do sofrimento e da psicopatologia na atualidade. O declínio simbólico da autoridade tradicional é um fato constatável no mundo social e descreve a erosão das referências que se ofereciam como códigos de interpretação sobre a vida, seus acontecimentos individuais e coletivos. Época em que os sujeitos, inclusive o sujeito freudiano, situavam-se em relação ao mundo pela mediação de um Outro consistente, cuja anterioridade e exterioridade delineavam sua função no sistema social. Tempos sólidos da modernidade em distinção à modernidade líquida, designação metafórica de Bauman para qualificar o caráter volátil e transitório do novo contexto que habitamos.

Se o Outro muda, mudamos juntos. Mudanças alavancadas por meio de lutas, como por exemplo, em favor das minorias políticas, historicamente submetidas a um longo inverno e pelo desenvolvimento sem precedentes de novas tecnologias em favor de uma vida melhor. Vive-se num laço social onde a versão vertical e central da autoridade simbólica se desmonta em direção a uma perspectiva mais horizontalizada, pluralizada e inclusiva. O pensamento que Bauman apresenta sobre as consequências da dialética entre segurança e liberdade, valores essenciais em qualquer sociedade, tem inspiração freudiana e nos ajudam na reflexão sobre as dinâmicas atuais da vida coletiva.

Deste processo de transição, algumas coisas se destacam, dentro de uma perspectiva clínica. É curioso dizer que faz algum tempo que não ouço ninguém fazer uso da palavra pecado, menos ainda associá-la ao seu sofrimento. Arrisco dizer que a opressão vinculada ao pecado se deslocou para outras versões de fantasmas coerentes com os ideais em voga: a insuficiência e o fracasso surgem como novas ameaças que assombram homens e mulheres desde antes do seu nascimento. Os homens, parcela da população tradicionalmente refratária a falar sobre suas angústias, agora adentra sem pudor aos espaços clínicos, compartilhando as incertezas veladas sobre seu universo. O trabalho, fonte clássica de sublimação, tornou-se um fator de adoecimento, seja pela precariedade e pela ausência da sua garantia, seja pela sua demanda onipresente, inquietude que fomenta quadros ansiosos e depressivos. As esperadas férias e feriados já não se mostram capazes, o suficiente, para desfazer o estado de exaustão sem fim que domestica e paralisa corpos e mentes.

Esta pequena explicitação da variação clínica contemporânea, tem chamado minha atenção em um aspecto em particular. Provavelmente, não seja um fenômeno novo, mas sua extensão no cotidiano, arrisco dizer que sim. O que impressiona é a miríade de estratégias de que as pessoas lançam mão para fazer frente àquilo que é vivido como sintoma, sofrimento ou problema. O caminho percorrido desconsidera hierarquias e contradições onde todas as alternativas, formais e alternativas, espalhadas no cotidiano são elegíveis. Vale lembrar que a globalização e a disponibilidade de acesso às novas tecnologias permitem que nosso cotidiano possa ser, virtualmente, do tamanho do mundo. Das tradicionais práticas religiosas de diferentes matrizes, passando pela astrologia, psicoterapias, cartomante/vidente, psicanálise, espiritismo, literatura de autoajuda, psicofarmacologia, psiquiatria.

Nada é excluído. Tudo está em vias de ser considerado. Como numa ciranda, as pessoas transitam, circulam, experimentam, repetem. Contam e recontam suas histórias numa trajetória em que coexistem, com poucos conflitos, concepções eticamente antagônicas sem exigência de fidelidade. Perspectiva errante que nos faz supor uma intenção nostálgica neste movimento, por vezes, angustiado em busca de um Outro consistente, detentor da resposta definitiva. Demanda que fracassa, inexoravelmente. Por outro lado, consigo ver nestas andanças “a la Dom Quixote” uma proximidade com a ideia de aventura, jornada em que alguém se move com alguma paixão tendo em conta o imprevisto, o risco, a surpresa e peripécias de toda ordem.

Advertido da presença de alarmistas e nostálgicos de plantão, preciso dizer que não há recusa dos avanços da ciência, tampouco do conforto possível da religião, nem dos benefícios e dos objetos fabricados para melhorar as condições da vida humana. Aqui, a reflexão toma fôlego. A psicanálise, a partir da sua experiência teórica e clínica, pensa que todo e qualquer sistema simbólico em torno do acesso à verdade se depara de maneira incontornável com um limite, quer dizer, todos os campos de conhecimento, sem exceção, se defrontam com a sua própria castração. O sofrimento, assim como a própria vida, porta uma dimensão de indeterminação em sua estrutura. Este não saber, este saber não localizável, que a psicanálise nomeia como inconsciente, nos impulsiona e nos faz andantes por entre as malhas discursivas, costurando e descosturando sentidos e sintomas. Este furo no saber nos põe a falar e a contar nossos dramas e nossos desejos. Nesse sentido, não me parece que o progresso da ciência, os dogmas da religião e os objetos revestidos de matiz fetichista possam ser derradeiramente letais à psicanálise, justamente porque embora o sujeito almeje a verdade é em torno da dialética entre o saber e o não saber que a ciranda da vida gira.

Algo da vida escapa das tentativas de capturá-la por meio de tabelas, índices e estatísticas. É possível e esperado que o sujeito se veja incluído e identificado nestes gráficos. Contudo, tem algo dele e de cada um de nós que não se representa, que se mostra como falta. É justamente neste ponto que reside o que é singular e próprio de cada um e que resiste à generalização. Desde este ponto, o sujeito se vê impelido a falar, contar, narrar, desenhar, escrever, pintar, tecer, fazer, pensar, sonhar. Sozinho com seus pensamentos ou com amigos, junto à família, no trabalho, cada um de nós tem uma história de como veio ao mundo e de como está nele. A despeito de algumas “imprecisões da memória”, precisamos desta história para seguir vivendo, da mesma maneira que precisamos dos outros para poder falar sobre ela. Mesmo quando navegamos no mundo virtual, o que se faz é uma convocação de reconhecimento ao Outro e dos outros para seguirmos contando e inventando a própria história.

(*) Psicanalista, membro da APPOA. E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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