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2 de abril de 2019
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10:27

Pornocracia: o obsceno invade a esfera pública

Por
Sul 21
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Imagem que integra a instalação Relógios: dias de areia: segundos de chuva (2015), de autoria de Hélio Fervenza.

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

Quando o obsceno invade a cena pública a democracia perde. Mas, quando a pornografia é praticada e estimulada por um presidente da república, tornando-se ato de Estado, estamos na pornocracia. Trata-se da mostração do gozo com aparente legitimidade. Esta afirmação decorre da leitura de A cidade perversa: liberalismo e pornografia, de autoria do filosofo francês Dany-Robert Dufour (2010).

Recentemente reli esse livro, pois me parece que ele dialoga com a nossa atualidade. Eis a abertura: “Sade não morreu! Mais ainda: ressuscitou. Que nada: triunfa! Vivemos num mundo cada vez mais sadeano”. Logo após o autor se interroga: “Mas que é exatamente um mundo sadeano? É um universo no qual os indivíduos obedecem, antes de mais nada, a este mandamento supremo: goze!”.

O gozo se manifesta de múltiplas formas na sociedade contemporânea, seja mediante o consumo desmedido, as vendas de ideais de felicidade, ou simplesmente pela voracidade de um sistema econômico imerso na lama de um capital financeiro que requer lucro a qualquer custo, ainda que isso implique, muitas vidas. Curiosamente, esse gozo sem limites – além de jogar muitos numa busca frenética por melhoria de performances em todos os setores da vida – parece nos impedir de reconhecer alguma satisfação, algum prazer. É preciso mais, mais, e sempre mais; do contrário, você será um loser, ou no mínimo um acomodado numa perigosa zona de conforto. Até aí, nada de novo, já estamos acostumados com essa retórica entediante. Mas, antes para falar do obsceno em causa no desgoverno da república pornocrática, voltemos a atualidade de Sade.

Donatien Alphonse-François, o Marquês de Sade (1740-1814), pioneiro da literatura libertina, ficou conhecido como o anjo negro da modernidade, aquele que levou às últimas consequências a busca de uma excitação suprema e a prática da expressão hiperbólica da dor. Os libertinos surgem no século XVIII como uma espécie de liberais, que radicalizam os ideais iluministas e desestabilizam os códigos de representação de sua época, sobretudo, naquilo que diz respeito às representações do corpo, do desejo, do poder, do sexo e da violência. Eles se tornaram protagonistas de uma forma subversiva de pensar capaz de se desdobrar entre a intensidade das luzes e a penumbra do final do século. Tomado pelo o anseio de supor que tudo pode ser dito e teatralizado, o libertino exige o autogoverno, recusando assim, se deixar dobrar por qualquer ordenamento, salvo as regras instituídas pelo o próprio gozo.

Herdeiro das trevas, Sade irá ler a natureza como a responsável pela degradação humana, haja vista o inevitável surgimento das doenças e catástrofes naturais. Assim, ao invés de ser corroído por ela, ele irá antecipar seus efeitos degradantes mediante a busca de um gozo sem limites. Diante disso, o projeto libertino, por odiar a mãe natureza, e consequentemente, o outro, exige a indiferença com o semelhante. Logo, faz-se imperativo a recusa da tolerância alheia. É preciso gozar, antes que a natureza acabe com tudo.

Na pedagogia Sadiana tudo precisa ser dito, para depois ser encenado, logo, os ouvidos serão os primeiros orifícios a serem perfurados. Sade é muito mais rico e amplo do que podemos dizer em algumas linhas, em especial, em relação a nossa pornocracia seria indigno compará-la como a libertinagem sadiana. Por que? Ora, mesmo em Sade havia lugar para libertinagem, ou seja, o castelo era o espaço para o exercício do obsceno na esfera privada.

Entretanto, na pornocracia não é assim, o obsceno é jogado na esfera pública, seja porque o suposto clã tem a indignidade de não poupar a morte de uma criança de sete anos e a dor de seus familiares, simplesmente, por ser neto de um inimigo político, seja pelas macabras risadas diante do triste assassinato de Marielle. Tamanha é a obscenidade que o eterno candidato autoriza a comemoração do golpe de 31 de março de 1964, desmentindo assim, os efeitos nefastos da ditadura militar e suas consequências para a democracia.

Nada de novo para quem já homenageou torturadores e milicianos. Nunca vamos esquecer quando Bolsonaro ao saber que Miriam Leitão, mesmo estando grávida fora severamente torturada, inclusive sendo deixada com uma Jiboia numa cela escura e fétida, a sua resposta: – “pobre da Jiboia”. Como se isso não fosse suficientemente estarrecedor, sem constrangimento algum, ele repete essa frase numa entrevista face a face com o jornalista, filho de Miriam. Nestas horas é inevitável pensar na importância civilizatória da empatia com o sofrimento do outro.

Quando isto é totalmente desprezado, perde-se tanto a dignidade, quanto qualquer virtude política. Sim, mesmo na política, faz-se indispensável a vergonha e o respeito.

Na pornocracia não há responsabilidade com a palavra, tudo pode ser dito sem haver qualquer consequência. Por isso, esses apolíticos buscam apenas chocar, escandalizar, arrombar, desmentir e propagar o ódio mediante uma racionalidade paranoica que só se sustenta através de uma perversão generalizada. Na esteira desse gozo, o presidente da república divulga em sua conta oficial do twitter um vídeo de um homem dançando no carnaval, introduzindo o próprio dedo no ânus enquanto outro urinava na cabeça dele. O inacreditável é o fato dele repercutir a cena dando uma verdadeira dedada na nação com o intuito de destituir a beleza e a legitimidade da maior festa popular do mundo, onde resistência política, cultura e as mais diversas expressões artísticas estão amalgamadas.

Como disse Orlando Calheiros em entrevista para Instituto Humanitas Unisinos (março 2019): “o samba não faz despertar uma consciência política, o samba é a própria consciência política já desperta desses pobres e periféricos”. Basta lembrar do saudoso Bezerra da Silva – “o morro só apanha e o samba é a sua defesa”.

Além da estupidez em questão, é flagrante não existir a mínima noção de lugar, responsabilidade e liturgia do cargo. Isto me faz pensar na observação da psicanalista Ana Costa: “vivemos em tempos da recusa do líder e do referente, o que está em questão não é a identificação a um líder, é o gozo”. Quando o obsceno invade o Estado resta a ofensa, a perseguição, a humilhação, a destituição dos inimigos e a força da lei para quem convém. Na pornocracia, além dos ouvidos serem perfurados, o ânus virou alvo do gozo escópico de uma perversidade camuflada em moralidade e defesa dos bons costumes.

Embora o imperativo sádico tente a todo custo impor a sua voz, não podemos nos calar. Portanto, viva o Carnaval, salve a Mangueira, a Cultura e os artistas! Ah, os artistas tão perseguidos por aqueles que não suportam a arte, o diálogo, a contradição, as metáforas, a destituição das certezas alienantes, a digna fragilidade humana.

Rever uma imagem (2015), que integrou a instalação Relógios: dias de areia: segundos de chuva, de autoria do nosso querido artista Hélio Fervenza, ajuda-nos a atravessar esses dias.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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