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23 de abril de 2019
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10:35

Notre-Dame em nosso tempo

Por
Sul 21
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Notre-Dame em nosso tempo
Notre-Dame em nosso tempo
Reprodução/Youtube

Alfredo Gil (*)

Em 1937, Freud escreveu um artigo intitulado “Construções em análise”. Trata-se de um texto curto e denso no qual ele busca compreender as diferentes maneiras que um paciente encontra para entender seu presente, seus sofrimentos. Na cura psicanalítica, o paciente resgata seu passado, as zonas opacas e esquecidas de sua vida, as lembranças incertas, as sequelas da sua história. O que fazer quando uma lembrança dolorosa não para de ser recordada, sem que se consiga evitá-la, até o ponto em que esta manifestação passe a ser vivida como um corpo estranho na sua existência ? Ou, assim como a verossimilhança de uma lembrança, por vezes difusa, pode bastar para ser experimentada emocionalmente como uma verdade histórica, mesmo se nada no passado possa justificar sua aparição. Contrariamente, e paradoxalmente, experiências violentas que fizeram irrupção na vida, no corpo de alguém, podem ser tratadas como se nunca tivessem existido e serem amputadas psiquicamente.

Qualquer que seja a versão predominante de expressão do paciente ou sua maneira de compreender as determinantes históricas do seu passado no presente, Freud, neste texto, alude ao trabalho do arqueólogo comparando-o ao tratamento psicanalítico, que, em meio a escavação de uma morada que foi destruída, soterrada, queimada, deve conceber sua “(re)construção” a partir dos restos que foram conservados.

Pois é, segunda-feira retrasada, pasmo e imóvel, fiquei algumas horas, no Pont de Sully, em meio a uma massa muda, olhando a Catedral de Notre-Dame de Paris queimar, arder, cuspir fogo, na ânsia de saber o que dela iria restar. A imensa quantidade de água vertida pelos bombeiros, naquele momento, parecia apenas respingos lançados num imenso caldeirão. Balanço final: a perda é incomensurável, mas o consolo é significativo, pois os 400 bombeiros salvaram a estrutura principal da Catedral.

O fato de que o incêndio de um dos monumentos mais visitados do mundo (15 milhões de pessoas por ano) tenha suscitado tanta comoção não me impedia, a nível individual, de tentar definir o que eu estava perdendo naquele momento.

Parênteses: a hipótese de um atentado terrorista tendo sido rapidamente descartada tornava este questionamento ainda mais agudo, na medida em que o pensamento não podia se cristalizar na forma de um simples rechaço a um inimigo.

Mas as respostas que encontrava não me satisfaziam. Logo, acabei por render-me à evidência de que a perda causada pelo incêndio na Notre-Dame não podia reduzir-se a uma simples perda pessoal. Digamos que a dimensão metafísica, transcendental de uma tal experiência, extrapolava a minha ínfima existência. Ou, melhor ainda, o sentimento doloroso e verdadeiro de que o tempo de nossas existências é ínfimo, de repente, era ainda mais flagrante diante da imensidão de algo quase milenar que ali se transformava em cinzas.

O fato de que a intensa comoção que pairava no ar fosse coletiva, mesmo que a dor como experiência seja subjetiva, dava ao acontecimento um peso que não podia circunscrevê-lo unicamente em mim mesmo. Diante desta constatação, nossa condição de ser mortal acentua-se, mas a do ser vivo se enriquece em sentido e valor. Pois vale lembrar que é este valor e sentido que faz da vida outra coisa de nós que somente uma presença corpórea, ou seja, ossos e carne envoltos numa camada de pele. Aliás, naquele momento, afetar-se profundamente por uma história e por um bem comum nos permitia lembrar que a dimensão espiritual contida em um acontecimento revela neste sua propriedade de tecer laços entre as pessoas.

No dia seguinte ao desastre, a questão sobre qual reconstrução possível e desejada para a Catedral dos restos que sobreviveram impunha-se com urgência. Ao que parece o custo não será um obstáculo, pois em poucos dias mais de 1 bilhão de euros já tinham sido recolhidos em forma de doações vindas do mundo inteiro.

Pensar e projetar rapidamente sua reconstrução era certamente uma maneira de suportar a destruição. Maneira do homem de reconhecer o valor simbólico do monumento mas também, talvez, reação humana de intolerância face à destruição. Como exemplo desta, temos a fala do Presidente Emmanuel Macron : “nós reconstruiremos a Catedral ainda mais bela e quero que esteja pronta em cinco anos”; e a do ex-Ministro da Cultura, durante o mandato do Presidente François Mitterrand, Jack Lang, que afirma que a reconstrução tem que ser feita em três anos.

Infelizmente, nossos homens políticos têm pensado a vida a curto prazo. Em outros termos, a medida tomada são suas vidas ínfimas. Já filósofos, historiadores e arquitetos, numa relação bem mais sábia com o tempo e delicada com a obra – relação necessária e adequada a um tal patrimônio ao respeitar sua dimensão transcedental e seu valor simbólico – consideram que uma reconstrução de tamanha envergadura exigirá entre quinze a vinte anos de trabalho.

Como disse anteriormente, a comoção diante deste incêndio trágico provocou um sentimento de comunhão muito forte. Mas o inconveniente de um acontecimento que abole as fronteiras é de nos encontrarmos em união não somente pessoas que não se preocupam com as consequências de um incêndio, mas que, no mínimo, vêm jogando muita lenha na fogueira em seus países e pelo mundo afora.

Gente como Matteo Salvini, Donald Trump e Jair Bolsonaro, que tratam a condição simbólica do homem com menosprezo, compartilharam suas penas diante do incêndio da Catedral de Notre-Dame de Paris. Gostaria de acreditar no Evangelho: “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, e nem o que dizem.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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