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16 de abril de 2019
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14:03

Nossa terceira margem do rio

Por
Sul 21
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Nossa terceira margem do rio
Nossa terceira margem do rio
“A Terceira Margem do Rio”, de Guimarães Rosa. (Reprodução/Youtube)

Robson de Freitas Pereira (*)

“O Brazil não conhece o Brasil”[1]

“Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente – minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.”

Assim inicia uma das maiores obras de nossa literatura, o conto “A terceira margem do Rio”, de João Guimarães Rosa. Lançado em 1962, fazendo parte do livro Primeiras Estórias, desde então vem produzindo desdobramentos em nossa cultura, com efeitos dos mais diversos a começar pelas adaptações para o teatro, cinema, músicas e mesmo instalações artísticas. Sem falar na fortuna crítica propriamente dita, onde os ensaios, dissertações e teses são incontáveis nas mais diversas línguas.

O autor explicava, numa entrevista na Alemanha, no mesmo ano do lançamento do livro – https://youtu.be/ndsNFE6SP68  que estas estórias eram primeiras porque ele estava experimentando escrever contos mais curtos. Idéia que nasceu quando colaborou regularmente para o suplemento literário de um jornal, tendo um espaço determinado. “Acho que para o artista toda limitação é estimulante”. Interessante pensar o quanto o trabalho do artista é fundamental nestes tempos de graves limitações à criatividade, onde a sociabilidade e a confiança mútua sofrem severas restrições, nas tentativas frequentes de cerceamento e de um estado de tensão permanente onde tudo se resumiria a buscar segurança onde ela é cada vez mais distante.

Voltemos ao conto. Aprontada a “canoa especial, de pau de vinhático…Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus pra gente.”

A partir de então, nunca mais voltou, ninguém nunca mais ouviu sua voz ou pode testemunhar nem que fosse uma rápida encostada na margem do rio. Ficava sempre lá no meio: “ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de ficar de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.”

E toda a família, comunidade teve que lidar com este acontecido surpreendente, traumático. Passaram-se os anos. A família foi se modificando, a irmã casou, teve filho, foi morar noutra cidade. Sua mãe envelhecendo, foi residir com a filha. Só o narrador foi ficando, no diálogo silencioso, interno com o pai. “Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida.” E mesmo quando os cabelos brancos começaram a se fazer notar ele ainda sentia uma tristeza e culpa inexplicável. “De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência; e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo.”

A esta questão fundamental, o filho nos conta o episódio que o marcou profundamente, num breve tempo. Tomou a decisão chamar o pai e propor trocar de lugar com ele. E, magicamente, depois de tanto tempo, o pai apareceu. “Chamei umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: – Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto…Agora o senhor vem, não carece mais… O senhor vem , e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!…”

E ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’ água, proava para cá, concordado….E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia… Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte do além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão..

Sou homem depois deste falimento?”

Uma das riquezas da ficção é nos ensinar verdades através de seus efeitos.

Num conto de três páginas, somos confrontados com a tradição da literatura ocidental embalada nas estórias de viagem, exílio e retornos impossíveis. Também com a estrutura da subjetividade que se organiza no silencio do pai, de seus atos inexplicados, fazendo o luto de sua ausência e sua viagem pelo rio da vida e da morte. Entretanto, se a culpa e a tristeza por uma perda são inevitáveis elas não precisam ser permanentes.

Interrogar-se sobre suas falhas também pode ser o relançamento dos sonhos, afinal o poeta popular cantou “porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos”. Questionar-se faz parte da elaboração do luto e do processo civilizatório. Quem só tem certezas perde sua humanidade; por isto um fundamentalismo está cheio de certezas e busca impingir sua verdade aos outros (a ferro e fogo). Uma delas, a de que um rio só tem duas margens. Para nós, humanos, o rio da vida pode ter terceira margem. Invisível aos olhos, mas perto do desejo de quem sustenta o valor da palavra, das artes, da delicadeza e fragilidade de uma relação respeitosa.

Sustentar a alegria em detrimento do ódio para, até mesmo, enfim, fazer a ficção poética de nosso final, como Rosa nos deu a ler: “Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não para, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio”.

[1]Querelas do Brasil”, de Aldir Blanc e Mauricio Tapajós. Cantada por Elis Regina

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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