Colunas>Coluna APPOA
|
30 de abril de 2019
|
10:26

Cápsulas do tempo

Por
Sul 21
[email protected]
Revista levada à audiência pública da Comissão da Verdade, no Araguaia, relata a atuação dos militares em terras dos índios Suruí. (Foto: Lívia Mota / ASCOM – CNV)

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

O negacionismo histórico começou a ganhar força nos anos 1980. Surgiu como reação à aceitação, também pela comunidade acadêmica, de testemunhos dos afetados por práticas de violação de direitos como fonte legítima da história coletiva. Até aquele período apenas dos arquivos formais não censurados saía versão oficial pública, também reproduzida nos livros didáticos. As outras versões pareciam anódinas, restritas à literatura memorialística, individual, como coisa menor para a coletividade. História e memória coletivas enriquecidas pela pluralidade das narrativas testemunhais funcionaram como empuxo ao desejo de direito à verdade e à justiça. O laço social tensionado pela quebra dos silêncios e o crédito à palavra dos afetados, e dos excluídos da história oficial.

Diferente do negacionismo é o revisionismo histórico. Processo legítimo de reinterpretação de um acontecimento a partir de achado arqueológico, testemunhal, documental, antes censurado, ou por um aprimoramento tecnológico. Todos em condições de esclarecer pontos até ali enigmáticos, obscuros. A revisão é qualidade moral e intelectual na historiografia. Equivocar-se por falta de elementos ou por desconhecimento, e reconhecer depois, é diferente de censurar, ocultar ou distorcer deliberadamente para afirmar tese espúria de projeto de poder monocórdio.

Recentemente o avanço tecnológico permitiu ler conteúdo de uma carta de 1944, escrita pelo prisioneiro grego, Marcel Nadjari, constrangido a trabalhar nas câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau. Ela ficou enterrada naquele campo até 1980 numa garrafa envolta em bolsa de couro. Outras seis cartas, encontradas em condições semelhantes, testemunham os horrores sofridos pelos prisioneiros naqueles tempos. Verdadeiras cápsulas do tempo, que compõem agora nosso acervo de memória testemunhal, coletiva e compartilhável.

É de 2017 o filme Negação, cujo roteiro explicita o processo movido por David Irving, escritor inglês, conhecido por negar o Holocausto, contra a também escritora e historiadora americana Deborah Lipstadt, que o afirma negacionista histórico. Irving recusa o assassinato em massa dos prisioneiros em câmaras de gás, porque, argumenta, não haveria evidências materiais: “não foram encontradas chaminés nos escombros dos prédios”. Para os personagens do filme, e também para o espectador, é exigida grande dose de moderação ao ouvir um discurso cínico. Um dos pontos altos da trama, que surpreende de início, é a estratégia adotada pela defesa de Lipstadt.

Decide não chamar os sobreviventes para prestar depoimento, tampouco a historiadora, como ela desejara. Escolha cuidadosa. Não conduzi-las ao banco dos réus evita a reificação, e a repetição do gozo negacionista de Irving. Tira-lhe a oportunidade para recusar seus testemunhos, alegando falsificação de memórias, e assim tramitar uma exculpação, espúria, dos algozes. A opção da defesa esclarece também um ponto do impossível: interpretar a negação na esperança de fazê-la passar a seu oposto; e uma direção política: trabalhar para a explicitação dos desvãos do discurso negacionista, em seus próprios fundamentos.

Algumas vezes testemunhos precisam atravessar oceanos para encontrar reconhecimento. O silêncio dos outros, filme-documentário de 2018, narra a busca por justiça – porque negada por lei – para os afetados por violações durante o regime de Franco na Espanha, enviando todos os arquivos não censurados e os testemunhos daquele período para uma Corte de direitos humanos na Argentina. Ainda hoje vige silêncio oficial sobre passado nefasto.

Não é muito diferente no Brasil. Depois da assinatura da lei da anistia em 1979, longos anos de tramitação até que as condições político-sociais fossem minimamente favoráveis ao reconhecimento, pelo Estado, das violações praticadas durante o regime de exceção militar vigente de 1964 a 1985. Muitas foram as vozes nas ruas, na música, nas artes, na literatura, no cinema, a partir dos anos 1980, que testemunharam a experiência dos anos de chumbo e clamaram pelo direito à liberdade de expressão do pensamento.

Criada em 2001 para executar o mandato da justiça de transição, a Comissão de Anistia ampliou sua legitimidade em 2010, quando da responsabilização e condenação do Estado brasileiro pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, por crimes contra a humanidade cometidos durante aquele período militar. A sentença reiterou o dever de o Estado promover reparação pecuniária e simbólica, acrescentando, ainda, a psicológica. O projeto Clínicas do Testemunho, concebido para prestar acolhimento, acompanhamento e reparação psíquica dos afetados, foi extinto indevidamente pelo governo em 2017, após cinco anos de trabalho. Também a instalação das Comissões Estaduais e Nacional da Verdade foi objeto da mesma sentença. Esses e tantos outros trabalhos pró-memória, verdade e justiça verteram os testemunhos em texto escrito. Uma extensa produção conceitual e testemunhal constitui legado público dos projetos da Comissão de Anistia, ainda disponíveis para livre consulta em bibliotecas físicas e virtuais [1].

Quando um determinado contexto político-social é demasiado hostil à pluralidade de narrativas; se estão fragilizadas as condições para o exercício da palavra e da dialética; se o discurso oficial tende à denegação dos acontecimentos; se estão em risco a integridade pessoal e as garantias jurídicas, é necessário criar mesmo assim formas de tramitar o saber construído, de operar uma transmissão, ainda que em cápsulas do tempo. Guardiãs do voto de esperança nas próximas gerações e de nosso patrimônio imaterial, simbólico.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre – APPOA, e do Instituto APPOA.

[1] Para conhecer um pouco do legado dos projetos da Comissão de Anistia

https://www.justica.gov.br/central-de-conteudo/anistia/anistia-politica-2

http://www.arquivonacional.gov.br/br/?option=com_content&view=article&id=161

http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora