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12 de março de 2019
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10:30

Leaving Neverland (2019)

Por
Sul 21
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Leaving Neverland (2019)
Leaving Neverland (2019)
Reprodução/Trailer

Luciano Mattuella (*)

Who’s bad?

Leaving Neverland, documentário em duas partes sobre os alegados abusos sexuais contra crianças cometidos pela estrela pop Michael Jackson será exibido aqui no Brasil pelo canal HBO nos dias 16 e 17 de março (às 20h) – após estas datas, estará disponível na íntegra pelo serviço de streaming da emissora, o HBO Go.

Já de início, para evitar desnecessárias polêmicas, quero deixar claro que, terminadas as quatro horas de Leaving Neverland, saí convencido de que Michael Jackson, apesar de um gênio da música, era alguém profundamente transtornado e, sim, culpado pelos atos de violência sexual que o documentário expõe. E que deveria ter respondido penalmente por isso, ainda que tenha sido inocentado das acusações. O documentário faz um ótimo recorrido de todos os julgamentos e acordos realizados, por isso não entrarei em detalhes a este respeito aqui. O que pretendo é compartilhar com os leitores algumas ideias e impressões que restaram após a dolorida experiência – porque sim, é uma experiência – de assistir a Leaving Neverland.

A primeira dessas associações se refere ao estatuto da memória. Temos por hábito pensar a memória de uma forma linear, o tempo como um fio que se estica do passado na direção do futuro – suposição, inclusive, que está na base de todas as lógicas violentas de inspiração desenvolvimentista: “tudo pelo progresso”, mesmo que isso implique dizimar minorias ou apagar aqueles que vivem às margens deste dito avanço. Nesta forma de entender a temporalidade, relembrar seria caminhar para trás na linha. Todavia, acredito que a questão seja muito mais complexa.

Compartilho com os colegas psicanalistas a suposição de que a memória, antes de ser uma linha, é um novelo intrincado cuja ponta do fio já perdemos. Lembrar de algo, nesse sentido, é escolher algum ponto deste novelo e, ali, fazer um corte para puxar a meada. As memórias não são somente representações do passado; como no tronco de uma árvore, o passado está no centro da sustentação das recordações – ele insiste em todas as nossas lembranças, mesmo nas mais recentes. Nós ainda somos o nosso passado. “A criança é o pai do homem”, como dizia Freud.

Em Leaving Neverland, testemunhamos o desenrolar do novelo das narrativas de Wade Robson e James Safechuck, dois homens que contam a história de como foram violentados sexualmente por Michael Jackson quando eram crianças. O relato é feito em primeira pessoa, de forma bastante íntima. Em comum a ambas as histórias, a ambivalência com a qual lembram do cantor: por um lado, Michael Jackson era uma fonte de “amor incondicional” (as aspas aqui são muito importantes) – ser amado por uma celebridade de tal magnitude era como uma dádiva. Afinal, nós não amamos nossos ídolos: nós queremos ser amados por eles, sermos dignos de seu reconhecimento. Entre os meninos e Michael Jackson criava-se uma relação de idolatria com tons quase hipnóticos.

Em um primeiro momento, criava-se uma atmosfera de fábula: Michael Jackson presenteava as crianças e suas famílias com casas, viagens, roupas e tudo o mais que quisessem. Ficavam em hotéis de luxo acompanhado as turnês. Eram convidadas a se hospedarem em Neverland, o rancho que era propriedade do cantor – a “terra do nunca”, onde ninguém jamais deixa de ser criança. Entretanto, depois de algum tempo, o artista passava a se aproximar sexualmente dos meninos, convencendo-os a tirar a roupa, deixar ele tocar em seus corpos e permitir serem vistos enquanto se masturbava. Nas falas de Wade e James, a narração desses momentos vem com um tom misto de raiva e paixão – um nó de afetos. E aí entra o outro lado da ambivalência, o outro ponto onde se pode cortar o novelo: o sentimento de culpa presente no discurso das duas vítimas.

A culpa parece surgir como uma demanda de protagonismo: ao se sentirem culpados por terem feito algo ilícito, é como se Wade e James tentassem se colocar não só passivamente frente a tudo o que aconteceu, procurassem encontrar ali algum papel ativo.

É neste sentido que eu acredito que o documentário seja de especial importância: pela difusão de suas histórias, Wade e James têm suas falas legitimadas e a estas é dado o devido lugar – ainda que falando de uma violência, eles são narradores de seu passado; são eles que desfiam o novelo. Se todos os detalhes narrados são verdadeiros ou não, pouco importa do ponto de vista psíquico: o inconsciente não diferencia entre os fatos “reais” e os “imaginados” – mesmo a lembrança mais absurda pode trazer um terrível sofrimento real.

Um segundo ponto que eu gostaria de compartilhar com os leitores diz respeito à implicação ética no campo da produção artística. Após a exibição de Leaving Neverland, muitas rádios e DJ’s ao redor do mundo disseram que nunca mais tocariam as músicas de Michael Jackson. Compactuam com a hipótese de que a obra resta de alguma forma “corrompida” pela vida do artista que a produziu. Em tempos de movimentos como o #metoo, de acusações contra figuras como Louis CK, Woody Allen e Roman Polanski, fica explícito que toda obra de arte, mesmo a mais despretensiosa, é um ato político e deve ser entendida como tal. Produz efeito na pólis que a recebe.

Assim, o “consumidor” da cultura (detesto o termo “consumidor” neste contexto) inelutavelmente faz também parte da obra: decidir continuar vendo filmes, ouvindo músicas, apreciando pinturas de artistas acusados de crimes implica um posicionamento ético que vai muito além de simplesmente concordar ou não com os atos daqueles que produziram estas obras. Vivemos em uma época em que a curadoria dos nossas escolhas é modulada pelos algoritmos, como no Spotify e na Netflix, por exemplo. Esta é uma situação, acredito, inescapável, mas isso não quer dizer que não devamos nos posicionar e nos tornarmos cientes desta alienação do nosso juízo de gostos e valores – e fazermos algo com isso. Aceitar ou não a oferta ininterrupta do algoritmo é um ato político.

Prefiro deixar a questão sobre seguir ouvindo ou não as músicas de Michael Jackson em aberto. Dada a complexidade do tema e as nuances às quais se faz necessário atentar, esse papo fica para outro momento. Mas quero ressaltar um último ponto: muitos admiradores do cantor estão criticando a parcialidade do documentário da HBO. Estariam eles buscando ser justos com a figura que admiram? Ou foram eles também amortecidos pelo canto das sereias? Quem é mau nessa história toda, afinal? Ainda: será que é tudo assim, tão black or white, para citar outra música de Michael Jackson?

Who’s bad? Em tempos em que a maldade foi elevada ao estatuto de uma cartilha de conduta, como infelizmente temos visto no Brasil, desmontar as falácias dos mitos que habitam entre nós é um trabalho difícil, porém necessário para que não fiquemos sob a hipnose que nos faria sermos coniventes com o pior dos mundos.

Em tempo: eu não quis exaurir o leitor com as muitas outras questões levantadas por Leaving Neverland. Para aqueles que ainda tiverem fôlego depois das quatro horas do documentário, sugiro escutar o episódio 279 do podcast Papricast, disponível nos aplicativos de podcasts dos celulares ou pelo link: http://paprica.org/2019/03/papricast-279-leaving-neverland/.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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