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5 de março de 2019
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10:44

Green book (2018)

Por
Sul 21
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Green book (2018)
Green book (2018)
Viggo Mortensen e Mahershala Ali em ‘Green Book’ (Divulgação)

Gerson Smiech Pinho (*)

Na década de 30, um carteiro do Harlem chamado Victor Hugo Green lançou um guia de viagem intitulado The negro motorist green book ou, em edições posteriores, The negro travelers’ green book. O livreto dirigido a viajantes negros foi difundido nos Estados Unidos por mais ou menos trinta anos e oferecia informações como uma lista de hotéis e restaurantes que aceitavam a presença de afro-americanos. Com o roteiro em mãos, era possível mapear os lugares para se hospedar e frequentar com segurança, já que a rígida divisão de espaços reservados a negros e a brancos trazia o risco de um viajante negro facilmente se tornar alvo de agressões. Tal cuidado era necessário, principalmente no sul do país, dado o contexto de discriminação lá existente àquela época.

O recém vencedor do Oscar de melhor filme faz referência a esse livro em seu título. Baseado em uma história real, Green book: o guia traz às telas a trajetória de uma turnê musical que percorre diversas localidades, de Manhattan até o sul dos Estados Unidos, no ano de 1962. A narrativa se centra no encontro de dois homens e nos efeitos que esta aproximação tem sobre cada um deles. Don Shirley é um pianista, negro, mundialmente famoso, de estilo sofisticado e erudito. Tony Vallelonga é um descendente de italianos, rude e pouco cortês, contratado como motorista de Don, e que tem a incumbência de levá-lo às diferentes cidades pelas quais irá se apresentar.

As rodovias envoltas por belos cenários têm presença marcante no filme, mas não são as únicas passagens através das quais a narrativa trafega. O deslocamento experimentado pelos dois protagonistas, além de geográfico, é também subjetivo e revela o quanto cada um deles se modifica no encontro com o outro. O compasso entre o estranhamento inicial que os distancia e a gradual aproximação comanda a relação tecida ao longo da viagem.

Green book acompanha o movimento traçado por Tony de uma posição firmada no preconceito racial em direção a outra, de tolerância e respeito à diferença, na medida em que convive com seu companheiro de viagem, assim como com a violência experimentada por ele. Ao mesmo tempo, o filme desnuda a intolerância e a segregação presentes no plano coletivo em certas regiões dos Estados Unidos no período retratado pelo filme.

A composição de qualquer grupo ou coletividade implica na coesão identificatória entre seus integrantes e no distanciamento daqueles que dele não fazem parte. O limite que transforma tal montagem em uma prática segregativa, como no caso do racismo, é a ânsia por exterminar o estranho e eliminar a diferença. Desta forma, saímos do campo da agressividade e ingressamos no território da violência, com as mais diversas e radicais expressões de intolerância ao outro.

Uma pergunta que é colocada em mais de um momento de Green book emerge como central: porque Don aceitou fazer aquela turnê, por territórios tão pouco acolhedores, se podia permanecer tocando em Nova Iorque, inclusive ganhando mais dinheiro? Tal decisão revela seu propósito de mudança, uma aposta de que através da arte pudesse intervir na ruptura do contexto discriminatório existente. Ato de resistência frente à ordem social opressora.

Green book é um filme sobre a violência e a segregação, mas também sobre a possibilidade de construir relações de tolerância e respeito em relação ao outro. A história se passa na década de 60, mas retrata uma questão crucial nos dias de hoje, em que se acentuam práticas de exclusão e de intolerância em relação à diversidade e à diferença. Nessa medida, o trânsito da música e da arte de Don Shirley podem seguir trabalhando em nós para inspirar novas formas de resistência.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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