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19 de março de 2019
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10:40

Epifanias e Joyce

Por
Sul 21
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“James Joyce foi quem fez da epifania no literário um composto perturbador”. (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

“E aí tive meio que uma epifania”… Esses dias mesmo alguém comentou, e contou um pequeno acontecimento. Achei curioso, desses termos que não costumam circular assim no nosso comum, mas que vez por outra retornam e até ganham certa força. Temos ouvido mais disso ou é impressão?

E o encontro – não tão casual, pois esse ano vou estar às voltas com James Joyce, com o recém editado  James Joyce Epifanias ( Ed. Autêntica, 2018 org., notas e tradução de Tomaz Tadeu, lindas fotos de Dublin por Lee  Miller e texto de Haria Natali). Hilária apresentação escrita por Tadeu, pois trata da epifania quase como espécie de bicho estranho que não se sabe bem como abordar.  De que se trata mesmo uma epifania, se toca, se sente, vem de algum raio de inspiração divina e nos toma? É preciso uma ambiência para recebê-la, ar de respeito e mistério, ou ainda o melhor seria se desligar e deixar ela vir seja como for? Agrega também a pergunta de que, no caso raro dela acontecer, “quem está no comando? O objeto ou o sujeito da epifania?” E por aí vai. O que fazer com ela? Exibi-la ou guardar e gozar no privado? E como o comum dos mortais pode fazer esse encontro, teria que ser um ser especial? É preciso estar em estado de graça ou basta um cálice de vinho para acolher a coisa? E conclui: “A epifania vem de longe. Tem uma linhagem nobre. Vem dos antigos gregos, dos antigos romanos, dos antigos cristãos. A epifania é divina. A epifania é profana. A epifania é de Joyce. A epifania é pop. A epifania é coisa nossa.”

Coisa nossa, bom desafio, muitas associações, como avançamos então?

Epifania, o termo, tem a ver com trazer à tona, revelar; com manifestação, aparição, desde a origem grega. Naquele contexto se tratava de algo que cruzava o divino em direção aos mortais. Um momento privilegiado em que os deuses se manifestavam aos homens sem intermediários, como seria o caso, por exemplo, de um Oráculo. Poderia vir como visões ou em sonhos, ser chamada pelas rezas ou aparecer de forma espontânea. De qualquer forma, a epifania era algo que chegava ao sujeito por caminhos distintos e, como se poderia dizer hoje popularmente, “causava”.

Atravessa os tempos não raro interna ao cristianismo, ligada em manifestações relacionadas a revelações (como milagres) e mesmo a eventos da vida de Jesus Cristo, santos ou mártires, dando consistência às narrativas da doutrina.

Chegando aos nossos tempos o termo foi se expandindo, ganhando contornos diferentes, agora no contexto comum. Vale também para manifestação, para algo que vem à luz mas pode ser no cotidiano, não implicando mais necessariamente o divino, e sim uma experiência que pode chegar ao sujeito como acontecimento. A expansão do uso da epifania prolifera, e pode servir hoje até como termo para qualquer coisa que nos damos conta de repente, uma verdade súbita, mesmo que banal e prática.

James Joyce foi quem fez da epifania no literário um composto perturbador. Perto do nonsense, por vezes do irônico, do que nos deixa perdidos e desacomodados, e ainda mais, com a sensação difusa de que ficamos de fora da coisa. Tem um enigma ali que se apresentou, mas que não se resolveu. Seu personagem Stephen Hero dá uma pista, usa a palavra epifania para dizer de “uma manifestação espiritual súbita, fosse na vulgaridade da fala ou do gesto ou numa situação memorável da própria mente”. Uma coisa impensada mas que de alguma maneira, fulgura. Vem em linguagem comum mas podem indicar pontos de abertura para um fazer poético, artístico, invenção. Quando algo da vida se torna arte. E atravessa Joyce em muitos momentos da obra, como em Retrato do artista quando jovem, em seus contos Dublinenses, em Ulisses. Também em Finnegans wake tem pistas.

São obscuras, as epifanias. Tem algo de estranho. Em alguns momentos “fazem questão” de não clarear para o leitor um dado de contexto que seria crucial para entender o de quê se trata, pois é da sua natureza, justamente, não ir em direção ao sentido, é preciso que reste algo solto. Isto se relaciona também, na escrita, com a profunda mudança do literário no modernismo, saindo da crise da representação, final do XIX, rumo a uma escrita fragmentária, de registros do fluxo de pensamento, um presente que ao mesmo tempo não tem como fixar.

Lacan, na psicanálise se interessou muito por esses momentos de epifanias em Joyce, e dá sua leitura: é quando o Real se encontra, se enlaça com o inconsciente. Real como isso que está para fora de qualquer sentido, mas que nos atinge. Sempre valioso abrirmos um tempo para transitar por estas experiências que aludem às bordas, aos limites, a essa zona em que também se engendram os saberes que não são totais, os “saber-fazer” e mesmo os estilos. Estilo como algo singular que ali se constituiu.

De Joyce, uma das suas epifanias:

“Um corredor longo e sinuoso: do assoalho sobem pilares de vapores negros. Está povoado pelas imagens de reis fabulosos, fixados em pedra. Suas mãos estão dobradas sobre os joelhos, em sinal de cansaço, e seus olhos estão enegrecidos, pois os erros dos homens sobem eternamente diante deles como vapores negros.”

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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