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26 de março de 2019
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11:37

Ainda um pouquinho de carnaval

Por
Sul 21
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Reprodução: Estação Primeira da Mangueira/Facebook

Maria Ângela Bulhões (*)

Já terminou? Ou ainda posso falar um pouquinho do carnaval? Não quero seguir o ano sem deixar registrado o que a Estação Primeira de Mangueira me proporcionou naquele dia 05 de março. Eu tinha chegado de viagem do exterior naquela noite de segunda-feira e, em função dos fusos horários, já imaginava passar a noite meio dormindo, meio em claro. Contava com a programação noturna da TV, que apresentaria o desfile das escolas de samba do grupo especial do Rio de Janeiro. Todavia, não imaginava encontrar ali um bálsamo para minha alma, um espetáculo de cidadania, um orgulho do que nossa cultura é capaz de produzir.

Compreendo que o fato de ter ficado fora do Brasil em férias durante algum tempo e ter chegado na minha terra, podendo falar a minha língua, situada em minhas referências, influenciou para fazer aquele espetáculo, naquela madrugada, me emocionar ainda mais.

Os depoimentos de quem participava da festa trazia o tom. Lembro que alguém disse: “a Mangueira não pode se dar ao luxo de não contribuir politicamente”.

Pois foi isso: um ato político

O tema era: história para ninar gente grande. A escola trouxe para a avenida o que não se conta nos livros. Tratou de mostrar os negros, índios e pobres que não são os heróis protagonistas de nossas cartilhas escolares. Entoavam em coro, sambistas e plateia: “eu quero um país que não está no retrato”.

Naquele cenário contrastava a alegria do carnaval com caveiras, que lembravam o “genocídio dos índios brasileiros”, ou com o carro alegórico cheio de sangue, que indicava “o sangue retinto por trás do herói”. Essa mescla de arte, festa, dança com as lembranças de nossas dores recalcadas produzia um espetáculo forte.

Os negros eram apresentados nas suas lutas por liberdade e direitos através dos personagens heróis. Zumbi dos Palmares e Dandara, sua esposa, abriam a apresentação. Neste carnaval nos fizeram conhecer e/ou nos relembraram daqueles heróis que ficaram escondidos por trás das batalhas perdidas, já que a história que ficamos sabendo é sempre contada pela ótica do vencedor. Lutas que, mesmo perdidas, puderam plantar as sementes para outras mais acontecerem.

Vibrei com a ala dos negros islâmicos que vieram da África Ocidental e que aqui organizaram a revolta dos Malês, na Bahia (maior levante urbano de africanos escravizados registrado no Brasil, em 1835). E com tantas outras lutas que ali na avenida mereceram “destaque”.

Um carro alegórico trazia páginas da nossa história que mereciam ser recontadas. Uma dessas era a de nossa ditadura, que ali pôde ser chamada, abertamente e em alto e bom tom, de ASSASSINA.

Estava na avenida presente de várias formas Marielle Franco, vereadora assassinada covardemente, por causa de sua defesa aos direitos humanos. A Mangueira mostrou que essa luta não será esquecida e que toma cada vez mais força, nas mãos firmemente entrelaçadas em torno dessa causa.

Enfim, foi pura aula de história para aqueles que querem saber, pensar e fazer do Brasil um país melhor.

Assim como não é possível pensar um sujeito sem conhecer sua trajetória familiar, social, econômica e cultural, também não podemos ignorar a história de nosso país para produzir as transformações que são importantes para nossa sociedade.

O desfile da Mangueira toca num ponto importante ao trazer para os holofotes personagens que nunca foram devidamente reconhecidos pela nossa história e apresentá-los de forma valorizada. Temos que produzir transformações a partir e apesar de tudo que já aconteceu e acontece aqui.

Na psicanálise, o sujeito chega contando sua história, considerando que ali encontrará as causas de seu sofrimento. Mesmo que ele não tenha escolhido a família, o bairro, a cidade ou o país em que nasceu , esses fatores farão toda a diferença para ele ser quem ele é. Certamente, a análise contribuirá para que alguns desses determinismos possam ser flexibilizados e para que o sujeito se torne menos passivo frente ao que aconteceu e acontece em sua trajetória de vida.

Também uma sociedade não pode deixar de se ver com as raízes de suas dores, de olhar para o passado e passar a limpo suas dívidas e lutas, de enfatizar seus motivos de orgulho, enfim, de reconhecer sua bagagem. Temos uma história passada e presente de injustiças sociais. Para continuar essa luta e transformar essa realidade, precisamos transmitir aos nossos jovens que essa já é uma batalha antiga e que eles fazem parte de um tempo dessa história; parte importante, pois sem eles a luta ficará mais difícil.

A Estação Primeira de Mangueira homenageou, através do resgate da história, todos aqueles que lutaram e ainda lutam por uma sociedade que possa manter igualdade de direitos na nossa diversa sociedade.

Bom, parece que meu entusiasmo e emoção realmente encontraram eco, já que a Mangueira foi consagrada a escola campeã do carnaval de 2019! Merecidamente!

Agradeço pessoalmente a Mangueira pelo estímulo à luta pelos direitos humanos através de seu belo desfile e samba enredo. Que esse seja um evento que fique na história!

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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