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26 de fevereiro de 2019
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10:30

Opacidades

Por
Sul 21
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“Em algum tempo do passado Coimbra se instalou em minha memória por outra frase anônima inscrita num pedaço de muro, que já não separava mais nada.” (Arquivo pessoal)

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Nestes dias de melancolia por projetos findos, ando de bicicleta pela cidade que é minha velha conhecida.

Quando volto de viagem com a memória enriquecida, me pergunto por que não a olho com a curiosidade do turista. No corre-corre cotidiano, da janela do carro ou do ônibus, a cidade fica opaca como instantâneo.

Um semáforo fechado obriga parar o tempo de ver o homem que dorme no alpendre da casa em ruínas na Cristóvão. Dois combalidos pelo abandono e pelas economias. Esta parte antiga e esquecida guarda tesouros. O prédio da cervejaria Brahma transformado em centro comercial. Na rua paralela contígua um túnel verde de tipuanas e jacarandás centenários florescem lilás na primavera. Há uns anos passou por ali um pé-de-vento pretensioso querendo derrubar seu titulo de “o mais bonito do mundo”.

Um pouco mais e estou no centro de odores acres e cores gastas. Quase virou passagem para os bairros e para fora. A Rua da Praia é daqueles casos que se conhece mais pelo apelido que pelo nome de batismo. Seu calçamento em mosaico de pedras de granito preto, cinza e rosa, entre a Marechal e a Dr. Flores, dos anos 1850, é tombado. Curioso é  por ele trafegarem carros.

A Duque de Caxias é especial, porque no morro mais alto do centro, porque perto dela tem o Teatro São Pedro,  e outros poderes. Desde 1988 a promotoria pública pode zelar pela sociedade, e se instalou ali no quadrilátero Praça da Matriz num palácio antes chamado Forte Apache. Dos outros lados o judiciário, o legislativo, o executivo e também a catedral.

Não só de poderes vive a Duque, tem a vista do viaduto mais antigo da cidade sobre a Borges, o Museu Júlio de Castilhos, o painel do Vasco Prado sobre a fachada lateral da Assembleia Legislativa, a Pinacoteca Rubem Berta, o Solar dos Câmara e mais abaixo, quando a rua desce em direção ao rio, a casa do Qorpo Santo. Dramaturgo do século XIX, foi internado num hospício no Rio de Janeiro porque escrevia demasiado crítico o seu tempo. As pessoas preferiam os velamentos, as crendices. Casualidade ou não, na parede de uma casa abandonada ali perto um personagem anônimo escreveu: A palavra assusta o corpo mata.

Vou criando associações para não esquecê-la. A cidade opaca.

Sigo para a beira do Guaíba reurbanizada. Para honrar a pecha, gaúcho belicoso, há anos brigamos para definir se é rio, lago ou estuário. O certo é que quis o poder público mudar a geografia por decreto, e decidiu lago. Logo depois saltaram das cartolas projetos de exploração imobiliária da orla.

Os tapumes nas janelas da Usina do Gasômetro, fechada.  Faz-nos falta a história. A estética do espaço público revelando uma escolha política. O resto todo é muito limpo, iluminado, ajardinado, bonito. A nova orla poderia estar em qualquer cidade. Como quarto de grandes redes hoteleiras, segue o mesmo padrão em todo canto do mundo. O que destoa é a vista da janela. O rio acinzentado iluminado pelo sol ao entardecer em Porto Alegre.

Em algum tempo do passado Coimbra se instalou em minha memória por outra frase anônima inscrita num pedaço de muro, que já não separava mais nada, na beira do Mondego: Muros brancos povo mudo.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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