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19 de fevereiro de 2019
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10:30

Dificuldades da prática psiquiátrica

Por
Sul 21
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Dificuldades da prática psiquiátrica
Dificuldades da prática psiquiátrica
Incêndio em Paris causou 10 mortes (Reprodução/Youtube)

Alfredo Gil (*)                      

Há duas semanas, um prédio de um bairro chique do oeste parisiense foi incendiado no meio da noite por um de seus moradores.

Os fatos foram rapidamente reconstituídos. A moradora que cometeu o ato criminoso era conhecida de todos: da vizinhança que se queixava regularmente, sobretudo do barulho noturno, do serviço de polícia que era obrigado a intervir para botar ordem e lembrar alguns princípios elementares da vida em coletividade, e do Hospital Psiquiátrico Sainte-Anne em Paris, onde ela havia sido hospitalizada várias vezes entre 2009 até o dia 30 do mês passado.

Este incêndio dramático causou dez mortes e 96 feridos, deixando alguns em estado grave.

Ele nos remete à história da loucura e das diferentes tentativas de institucionalizá-la, ou seja, de tratá-la e de contê-la nos casos mais críticos.

O Hospital Sainte-Anne foi transformado num serviço especializado de psiquiatria em 1863. De modo geral, a segunda metade do século XIX foi o momento de implantação efetiva na França (mas não somente) das primeiras instituições especializadas no tratamento de doenças mentais, tendo sido concebidas ideologicamente, no entanto, já na primeira metade daquele século, donde a lei promulgada em 1838 que ordenava tais medidas. Esta lei, que esteve em vigor até 1990, definiu pela primeira vez um quadro legal das instituições que deviam tratar e atender os alienados, como se dizia na época.

Mas sabe-se, sobretudo graças aos trabalhos do filósofo Michel Foucault, que a necessidade de legislar, em 1838, um quadro institucional legal não foi somente fruto de uma preocupação de prestar assistência aos doentes mentais. Tais medidas jurídicas, que permitiram a institucionalização de uma forma de tratamento psiquiátrico, tratava em grande parte de responder racionalmente e juridicamente a atos com consequências dramáticas, como a dessa senhora que colocou fogo na própria casa. Não por acaso, Foucault os designou “crimes absurdos”. Mas, absurdos para quem?

A racionalidade do Iluminismo faz emergir no homem um ser cujos atos são fundados na sua faculdade de julgar, e um ser de razão sobre a qual repousa sua autonomia de vontade. Junto a esta razão, que define e engaja sua liberdade e responsabilidade, soma-se o espírito científico do século XIX confrontado a expressões do absurdo que podiam chocar um vilarejo e monopolizar o interesse da imprensa local.

Decorreria daí a necessidade de enquadrar legalmente estes atos desprovidos de razão objetiva, motivados por construções que qualificamos de delirantes, escapando (ainda hoje) à compreensão da ordem social estabelecida. Ora, o Direito penal convocará os alienistas ao tribunal para esclarecerem atitudes obscuras, “absurdas” e principalmente criminais, que escapam à sua compreensão. Assim, a psiquiatria, assumindo a função de perícia que lhe foi outorgada no âmbito médico-legal na primeira metade do século XIX, obtém o estatuto científico que lhe faltava.

O aspecto dramático de tais passagens ao ato deve-se ao fato de que aquele que o comete encontra-se na impossibilidade subjetiva de responder pelo seu ato. Nestes casos, a aplicação da lei busca diferenciar a “ abolição do discernimento ou sua alteração”. No primeiro caso, tem-se a causa subjetiva de irresponsabilidade penal por transtorno mental, levando a pessoa aos devidos cuidados psiquiátricos, enquanto no segundo há um fator atenuante mas que descarta a irresponsabilidade, podendo o agressor ser condenado e encarcerado.

Nossa racionalidade muito dificilmente concebe a ideia de que possa haver ato sem agente responsável. Assim, todo sujeito deve ser capaz de responder conscienciosamente pelo seu ato.

Logo, se os fatos que causaram aquele incêndio em Paris foram rapidamente restabelecidos, a verdade do acontecimento ainda não foi completamente elucidada pois ela depende do testemunho de todos os implicados: vítimas, vizinhos e acusada, que se encontra atualmente em detenção provisória.

Sabe-se que, na noite do incêndio, a moradora acusada apresentava-se num estado de agitação importante, ameaçando os vizinhos, e em especial um que é bombeiro de ofício e a quem ela teria dito “olhe bem nos meus olhos, você que gosta das chamas, você vai ver o que é bom quando tudo isto explodir”. Importante notar que a “abolição do discernimento” não evacua a premeditação. Compreende-se, assim, que as vítimas deste terrível incêndio possam afirmar que ela sabia o que estava fazendo. O relato de um outro vizinho descreve também a agitação desta moça, que vivia sozinha, e acrescenta que ela uivava repetidamente: “ela é completamente louca, um dia terá um acidente”. Por experiência, podemos arriscar a hipótese de que provavelmente a incendiária estivesse falando dela mesma na terceira pessoa.

Atualmente, a irresponsabilidade penal é socialmente mal suportada, particularmente pelas vítimas, é claro. A primeira consequência, e que é importante, tem sido o aumento significativo de uma população carcerária com transtornos psiquiátricos graves, o que ajuda a compreender em parte o forte aumento de suicídios nas prisões.

Outra tendência social, especialmente quando a irresponsabilidade penal é reconhecida, é de designar ao menos um responsável que tenha cometido um erro ou faltado com seu ofício. Este responsável pode ser o serviço de psiquiatria por ter emitido uma autorização de alta, por exemplo, mesmo que a paciente não apresentasse sinais de periculosidade que justificassem ainda a hospitalização ou podem ser os policiais, como lemos na imprensa, por não terem sido suficientemente veementes e repressores na interpelação antes de a moradora colocar fogo.

O contraponto de tais acusações conhecemos também. O psiquiatra de quem se espera uma cura definitiva pode estimar que um período mais longo de hospitalização seja importante. Mas, na prática, com a diminuição drástica de leitos nos últimos anos, sabe-se que há uma pressão para reduzir o tempo de internação em função da lista de pacientes em estado agudo que aguardam sua vez.

A perda de serenidade tem sido a consequência desta prática tão difícil de ser avaliada através de critérios protocolares como os impostos pelas orientações políticas atuais, ou seja, deve-se há muito, e cada vez mais, à desconexão dessas diretrizes com o campo da experiência, à aplicação de lógicas de rentabilidade inadequadas a uma política de saúde mental. Outra consequência desta lógica: o tempo da hospitalização pode diminuir mas a dose medicamentosa aumenta para aplacar ao máximo os sintomas de alguém que não terá a proteção hospitalar, isso também para que os psiquiatras possam se proteger de eventuais investigações e acusações em caso de passagem ao ato. Algo semelhante verifica-se do lado da segurança policial, ou seja, agentes policiais podem ser acusados de negligentes, como neste caso, ou, ao contrário, acusados por abuso de poder quando estima-se que a força empregada é demasiadamente repressiva. Enfim, se correr o bicho pega e se ficar o bicho come. São deslizes próprios do tribunal popular das emoções e dos afetos frequentemente veiculados pela imprensa e redes sociais que exercem também sua pressão sobre os juízes.

Ironia do destino. No dia seguinte ao incêndio, cujos escombros ainda eram vasculhados pelos bombeiros e analisados pela perícia, lemos na cobertura do caderno especial do jornal Le Monde, “Ciência e Medicina” a reportagem intitulada, “As neurociências, auxiliares da justiça? Quando a imageria cerebral se convida para o tribunal”. A pretensão é simples. A neurociência, à qual já recorrem os tribunais americanos, e que tem chegado na Europa, conseguiria, graças à exames de imagem cerebral, atestar a responsabilidade de um acusado ou predizer um risco de recidiva criminal. Esse é o ponto nada simples em que nos encontramos no assunto.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected] 

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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