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12 de fevereiro de 2019
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10:25

Central do Brasil fez vinte anos

Por
Sul 21
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Central do Brasil fez vinte anos
Central do Brasil fez vinte anos
VideoFilmes/Divulgação

Robson de Freitas Pereira (*)

Vintage. Vintena. Viagem ao coração do Brasil. Viajar pelo interior do país em busca do pai. Não por acaso, o pai que sumiu no mundo e, também o pai que vive, pulsa na intimidade de cada um. Estas duas dimensões do pai são a própria demonstração de como o social e individual se articulam. A linguagem é sua condição. Um não vive sem o outro, um é sintoma do outro. Existe conciliação entre os dois? A psicanálise aponta a possibilidade de apropriar-se dos seus significantes. O que será isto? E na mesma discussão poderíamos nos perguntar qual atualidade do tema e do filme depois de vinte anos.

No filme brasileiro mais premiado depois do “Pagador de promessas”( Palma de Ouro em Cannes, 1962), Central do Brasil, entre mais de 50 prêmios internacionais, levantou Urso de Ouro de melhor filme, Urso de Prata de melhor atriz, Globo de Ouro de Melhor filme estrangeiro. Em seu roteiro, Josué (Vinicius de Oliveira) e Dora (Fernanda Montenegro) nos ensinam como se faz uma travessia brasileira – tão delicada que Guimarães Rosa escreveu advertência duas vezes: viver é muito perigoso e que um pai se encontra na terceira margem do rio. Advertidos de que o sertão é misterioso e múltiplo vamos nos aventurando.

Central do Brasil (1998), dirigido por Walter Salles e com fotografia de Walter Carvalho tem algumas imagens iniciais emblemáticas: entremeados de luz e sombra os vagões cospem e engolem multidões que inventam formas de se acomodar no trajeto entre “a cidade”(forma de se referir ao centro do Rio em relação aos seus bairros) e seu destino de moradia. Da Estação Central partem os trens que levam aos subúrbios. Mangueira é a primeira estação, outros nomes lendários do samba vem depois: Meier, Madureira, Osvaldo Cruz, Engenho de Dentro, Guadalupe e Marechal Hermes entre eles. Dora mora em Cascadura e trabalha no saguão da Central escrevendo cartas para quem precisa endereçar suas palavras, mas não domina a escrita. Professora aposentada, não disfarça o mau humor pela vida que leva. Obrigada a suportar o calor, a demanda dos clientes e, a pagar proteção diária ao “seu Pedrão” (Otavio Augusto), chefe da milícia local, garantia da tranquilidade de quem quer trabalhar sem ser incomodado pelos pivetes e descuidistas eventuais. A cena de como Pedrão e seus comandados lidam com um furto é exemplar. Impactante pela banalidade da violência ao ar livre, assistida e, silenciada por todos: ninguém viu, todo mundo viu. Um pequeno parêntesis: na atualidade esta atividade das milícias é um dos “empreendimentos” que só vimos crescer e se diversificar nos últimos anos.

Josué acompanha a mãe na tentativa de se comunicar com Jesus (!); o pai que havia ficado no nordeste. A primeira carta é furiosa: na tela ouvimos as palavras: “Jesus, você foi a pior coisa que aconteceu na minha vida… Mas ainda assim, teu filho pôs na idéia que quer te conhecer.” Josué, o menino, brinca com seu pião de madeira. Visivelmente antipatizado com a escrevente de missivas. Antipatia recíproca. Dora incomoda-se com um menino que insiste em cravar o pião na madeira da sua mesinha/escritório mal ajambrada. Dias depois, a mãe e o menino retornam: “a senhora já enviou aquela carta?”, “ainda não, ia mandar hoje”, responde Dora visivelmente embaraçada. “Ah, que bom, porque eu queria mandar outra”. “Então vamos lá!”, contesta depois de rasgar uma carta qualquer retirada do meio da pilha. Ana, a mãe, explica que na verdade nunca esqueceu aquele homem, apesar de seus defeitos. Dita uma carta fazendo a oferta mais carinhosa: “mês que vem estou de férias e posso levar o Josué para te conhecer. Aproveito e revejo os outros meninos que ficaram com você”. Feita a correção, ela sai contente, deixando um lenço bordado e arrastando o filho de nove anos que insiste em sua desconfiança com Dora: “como é que você sabe que ela vai por no correio? “. Na saída da estação, no meio da avenida presidente Vargas a tragédia: Ana morre atropelada por um ônibus. Coisa quase corriqueira nas palavras de seu Pedrão: “já tá ajustando as contas lá em cima”. Mais uma para as estatísticas de morte no trânsito.

A jornada Brasil adentro quase não acontece. Precisou que Dora, incentivada pela amiga Irene (Marília Pêra) e o remorso, resolvesse resgatar o menino, depois de tê-lo vendido para “o exterior” com ajuda de Pedrão (diversificando as funções de segurança). Mil dólares para cada um, quantia mais que suficiente para uma televisão novinha. Aqui começou a viagem ao coração do Brasil e o acerto de contas de Dora com sua história, incluindo-se aí valorizar a filiação- no início os dois são só filhos de “cachaceiros”; a feminilidade e a recuperação de valores como a palavra empenhada e amizade.

A visão dos romeiros de Bom Jesus do Norte. As cenas mágicas de fé e comunhão religiosa produzem um impacto na personagem e em seu jovem companheiro de aventura. A busca perseverante, o encontro com os irmãos que assumiram a herança do ofício de marceneiro deram consistência para o bordão com que Josué Fontenele de Paiva sustentava seu nome e lugar: “meu pai é carpinteiro. Faz casa, mesa, cadeira e pião”. Transformaram-se em significantes que agora realizavam a sustentação de um lugar no mundo e familiar (para lembrar da apropriação singular/plural que escrevemos logo no início). Foi preciso fazer um luto, pelos pais perdidos/mortos e também pela tentação de erigir um outro todo-poderoso que acabasse de uma vez por todas com o sofrimento com um passe de mágica ou uma rajada de balas. Este reencontro permitiu a despedida entre Josué e Dora que enfim podia escrever sua própria carta, seguir seu caminho, não precisava mais ficar aprisionada na Central do Brasil.

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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