Colunas>Coluna APPOA
|
15 de janeiro de 2019
|
10:39

“Jardineiros de fumaça”

Por
Sul 21
[email protected]
“Jardineiros de fumaça”
“Jardineiros de fumaça”
Divulgação

Lucia Serrano Pereira (*)

Entrada de ano levei junto “O clube dos jardineiros de fumaça”, de Carol Bensimon, para atravessar os feriados. Grande viagem por uma Califórnia complexa, densa, fascinante e conflituada. Ficção que nos apresenta um tecido de muitos fios e cruzamentos pelo Triângulo da Esmeralda, norte do estado, por onde foi se concentrando o plantio da maconha em áreas mais ou menos escondidas, de início, em boa parte pela iniciativa dos hippies que para lá se deslocaram depois do declínio de seus movimentos. E que terminou por configurar a maior zona de cultivo dos Estados Unidos. Acompanhamos a trajetória do personagem que puxa o fio, Arthur, professor de história em Porto Alegre, que é demitido pelo escândalo da descoberta do plantio de cannabis em casa ( escândalo que arrasta seu pai, médico renomado). Arthur inicialmente cultiva para que a mãe atravesse sua doença com menos dor. Depois de tudo, parte para a Califórnia e vai seguir, buscar os caminhos do plantio da erva de forma um pouco errante, aleatória; e é neste mapa contingencial e flutuante que adentramos, estrutura na narrativa que puxa o leitor em uma liga forte. E faz a entrega: o movimento hippie força e declínio, em flash back. A Contracultura, desde os anos 60, e seus efeitos. O caminho e as lutas travadas em prol da descriminalização da maconha. A violência. A política. A construção dos personagens, histórias de vida que, pela ficção, vão desdobrando esta incrível experiência, tudo isso em diálogo com nosso tempo e contexto.

Não vou em direção à resenha, mas ao efeito que ressoa. Dois que reverberaram.

Um deles vem pela mão de Dusk, rosto envelhecido, bigode grisalho, com a picape que parece “uma relíquia de guerra” e que faz a transversal do tempo. Como aquilo que foi subversivo e inovador em uma época sofre a reabsorção no establishment?

Dusk no início dos anos 70 é o jovem que sai do Texas rumando para a Califórnia, como muitos outros. Duas semanas vagando por São Francisco e ele se dá conta de que o sonho já é outro. A cidade está se tornando hostil a esses jovens que tinham vindo de vários lugares do país, e que vão ficando em situação precária, mendigando, fumando maconha, experimentando todo o resto, dormindo ao relento. Eles vão concluindo que é preciso voltar à natureza e construir algo novo. E vão construir no meio do mato, mesmo no despreparo da empreitada. Inexperiência de varias ordens. Inexperiência para o amor livre, para a vida em comunidade, para cavar, serrar, plantar; para as fossas sépticas, cabras, crianças. Mas tem o acreditar nos novos valores, e assim seguem. Dusk faz parte de um grupo que cria a comunidade hippie de Fish Rock Farm, que se sustenta por uns 20 anos. Conflitos? Um deles: a questão dos limites entre coletivo e individual. De um lado o novo com a ruptura que conseguiram. De outro, quem começa algo um pouco mais individual – aqui era arte – poderia ser rechaçado pelo grupo, acusado de egoísmo e valores burgueses.

A ironia ao final: Dusk se vê obrigado a abrir mão de sua cabana (eram várias na comunidade, se acompanhando ao longo dos anos). Vendem a Fish Rock para um artista que transformou a área em um airbnb, para quem quisesse experimentar a “autêntica experiência californiana” da vida em comunidade hippie.

Mas tem o contraponto. Em dado momento, contra todo o bom senso, Arthur aceita o pedido de Noah de levar a colheita, sua produção. Se trata de entregá-la a um comprador, e voltar com os sete mil dólares da venda. Justo ele já cheio de problemas com a lei no Brasil. Mas Arthur vai, pede emprestado o carro de Silvia, ambos sabendo do risco, afinal, é o on the road. A aventura da ação. Transgressão? Sim, mas tem sua nuance. Não era tanto pelo dinheiro da comissão que iriam ganhar. Por que ela empresta seu carro? “Tem a impressão de que não era o dinheiro, mas alguma coisa que ela precisava ver palpitar dentro de si mesma”.

Talvez ainda aquela partícula do contracorrente, da resistência aos controles do policialesco, de um anseio de certa liberdade, que também estava na origem dos movimentos. Esse plantio e cultivo carregava algo de herança daquele gesto de rebeldia do berço dos anos 60.

Partícula que palpita. O aparecimento de “algo novo” na cultura, implica sempre alguma transgressão, ruptura com o já acomodado, conhecido e esperado. Faz a surpresa, e devolve para quem produziu o gesto uma fresta de abertura para outras posições subjetivas.

Mesmo que implique na sequência sofrer novos recobrimentos. Importa o movimento, pulsação alternante entre abertura e fechamento; não se retorna, de qualquer forma, para o mesmo lugar. Os jardineiros da fumaça nos conduzem por estas trilhas.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora