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29 de janeiro de 2019
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13:00

Desassossego

Por
Sul 21
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Universidade de Coimbra/Reprodução

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

O ano de 2018 findou mais cedo. Já na primeira semana de dezembro eu começava a encaminhar as minhas férias. Nunca havia feito isso antes, tampouco tirado tantos dias para descansar. Desta vez, tanto a antecipação quanto o prolongamento foram indispensáveis. Provavelmente, a minha preocupação com o resultado das eleições contribuiu para isso ocorrer.

Como de costume, separei aqueles livros com o seu espaço garantido na mala, pois sempre me pareceu difícil viajar sem eles. Entretanto, passados mais de quinze dias, não consegui sequer abri-los. Coisa esquisita, férias sem leituras é como acordar e não escovar os dentes, sair de casa sem tomar café, jogar xadrez sozinho, fumar cigarros de chocolate, essas coisas… O desinteresse seria cansaço? Indiferença? Desamparo, essa talvez seja a palavra mais verdadeira. De todo modo, precisava ficar longe das notícias, como se estivesse a negar as absurdas medidas do novo governo, que já eram esperadas por aqueles que demonstram alguma consideração com a cultura, as minorias e as diferenças. Mesmo ciente dos motivos, isso não me ajudava a mudar de posição.

Certo dia, minha filha Isabella, convidou-me para conhecer uma livraria na cidade do Porto em Portugal, pois há muito tempo ela planejava essa visita em seus roteiros de viagens. Verdadeiro templo da literatura, com estoque de mais de 60 mil livros, a centenária livraria neogótica, Lello e Irmão, localizada no centro histórico do Porto, tornou-se uma das principais atrações turísticas do país. O fato dessa preciosidade ter inspirado a britânica J.K. Rowling a escrever a saga Harry Potter parece ter contribuído para o seu retumbante sucesso, assim como, para sua sobrevivência financeira (quanto a isso, vale conferir a reportagem da Folha publicada em 14/01/2019 – cinema e séries).

O lugar é imperdível, lindo, envolvente. Apesar do meu apreço pela busca de novas livrarias e sebos, dessa vez, mesmo com o entusiasmo de Isabella, a disposição era pequena. Não fiz esforço para retirar um livro das majestosas estantes, estava mais preocupado em desviar dos turistas e fãs do bruxo, todos ávidos para fotografar cada detalhe daquele lugar. Surpresa, minha filha, disse-me: não vais levar nada? Hoje não, respondi. Ao que ela rebate num tom sinistro: estranho…

Caminhei em direção a saída e através de um jogo de olhares fui fisgado pelo título: Livro do desassossego. Naquele instante, deparei-me com as letras que estavam a testemunhar o meu estado. Mais uma vez, salvo pelo único poeta presente na minha adolescência, parei e comecei a ler novamente: porque quem, morrendo, deixa escrito um verso belo deixou mais ricos os céus e a terra e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente

Diante da sexta edição do Livro do desassossego, de Fernando Pessoa, mediante a primorosa edição de Tereza Sobral Cunha, logo pensei o quanto o reencontro com o autor e, com esse livro em especial, pode nos ajudar a transpor essa regressão civilizatória tão evidente em nosso país, onde a palavra é ultrajada mediante uma linguagem pobre e monolítica. A propósito: seria possível pensar a linguagem sem a potência inventiva dos poetas? Já nas primeiras páginas o convite a invenção: Com uma tal falta de gente coexistível, como há hoje, que pode um homem de sensibilidade fazer, senão inventar os seus amigos, ou, quando menos, os seus companheiros de espírito?

Fernando Antônio Nogueira Pessoa, nasceu em Portugal, no largo de S. Carlos em 13 de junho de 1888. O pai, Joaquim Pessoa, funcionário público e musicólogo, faleceu de tuberculose, quando ele contava com cinco anos. A mãe, Maria Madalena, voltou a se casar em 1896 com um comandante da marinha, nomeado cônsul em Durban. Entre 1895 e 1905, Pessoa viveu na África do Sul, onde recebeu uma educação inglesa, primeiro no convento de West Street, depois na High School e na Commercial School, fazendo também O Intermediate Examination em Artes. Em 1905, quando poderia ingressar na universidade do Cabo, regressa a Lisboa. De volta à terra natal passa a frequentar por alguns meses a Faculdade de Letras. Conhece a poesia de Whitman e Baudelaire, Cesário Verde, Garrett, Antônio Nobre e Pessanha. Recebe uma herança e instala uma tipografia que não vai adiante. Então, resolve trabalhar como correspondente em inglês e francês em firmas comerciais para se manter financeiramente. Em 1912, conhece Mario de Sá-Carneiro e inicia colaboração na revista Águia, órgão da renascença Portuguesa. Quatro anos depois, em parceria com Carneiro, aquele se tornará o seu melhor amigo, e outros, lançam o primeiro volume de Orpheu. Foi um escândalo na época, colocando em cena o atrevimento e a vanguarda de uma nova geração. Em 1934 lança o seu primeiro livro de poesia em português: Mensagem.

Pessoa ficou mundialmente conhecido como poeta dos heterônimos. Certa feita, Ferreira Gullar, com o humor que lhe era próprio, teria dito: ele deveria se chamar Fernando Pessoas. Entre tantas datas, 1914 será um marco na história do poeta, trata-se do ano que ele se heteronimiza definitivamente. Daí em diante será vários: Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos….

Mais do que condensar um estilo de escrita, perpassando o neoclássico e o futurismo, cada personagem, ou melhor, cada autor terá sua personalidade distinta, com história própria. Com os seus quase oitenta heterônimos, descobertos até o presente, Pessoa se deu conta que a tal identidade pode ser algo contingente em uma vida. Creio estarmos num bom tempo para lembrar dos heterônimos e não congelar numa insana e débil cruzada ideológica. Ser vários, como uma forma de se outrar, neste momento, parece-me uma forma de manter a dignidade. Sejamos mulheres, homens, gays, héteros, lésbicos, travestis, negras, brancas, índias, trans… Mesmo porque, as palavras sempre serão insuficientes para dizer quem somos, pois há o real, um impossível, imprescindível ao humuns da linguagem.

O Livro do desassossego, organizado após sua morte, chegou as livrarias em 1982, tornando-se a sua principal obra na prosa ficcional. Não sou especialista em literatura, muito menos em Fernando Pessoa. Embora arrisco dizer que os jovens psicanalistas se interessariam por essa leitura, pelo simples fato de estarmos diante de um texto com a estrutura de um sonho, conservando assim, sempre algo de insondável. Sonhado ao logo da inquietude de toda uma vida e inacabado, ele desvela os labirintos da alma mediante impasses e reflexões face as múltiplas possibilidades de ser e habitar o mundo. Logo nas primeiras páginas o leitor é desafiado, e neste caso, quem ainda não teve a oportunidade de lê-lo, vale a advertência pertinente a todo clássico, a saber, suspenda a ingenuidade de tentar interpretar seus personagens, e lembre-se, como já disse Ítalo Calvino: diante de um clássico somos interpretados.

Deixe-se levar por Bernardo Soares, um ajudante de guardas livros num armazém em Lisboa. Ele encarna um pouco de cada um dos heterônimos de Fernando Pessoa, surgindo quando o poeta está cansado e sonolento, uma espécie de semi-heterônimo, quase ele, menos a afetividade, o amor. Já pensou como seria você menos alguma coisa? Isso poderia ser bom. Calma, caro leitor, não precisa ser o amor, poderia ser outra coisa…

Cabe outro detalhe da história do autor pertinente aos nossos tempos. Em 1928, quando Antônio de Oliveira Salazar foi nomeado ministro das finanças, Pessoa dedicou um poema ao ditador “feito de sal e azar”. Trago-lhes apenas um recorte:

Coitadinho
do tiraninho!
Não bebe vinho.
Nem sequer sozinho…
Bebe a verdade
E a Liberdade.
E com tal agrado
Que já começaram
A escassear no mercado

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e Instituto APPOA, Doutor em psicologia social e institucional – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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