Colunas>Coluna APPOA
|
22 de janeiro de 2019
|
10:31

Black Mirror Bandersnatch: escolha, alienação e trauma

Por
Sul 21
[email protected]
Filme traz a novidade de ser interativo, como num jogo de vídeo game. (Reprodução)

Maria Ângela Bulhões (*)

No final de 2018, foi lançado na Netflix o filme Black Mirror: Bandersnatch, que segue o modelo da série Black Mirror. Escrito pelo criador do seriado, Charlie Brooker, e dirigido por David Slade, o filme traz a novidade de ser interativo, como num jogo de vídeo game. O telespectador participa fazendo desde pequenas escolhas, como a de uma música que irá tocar na cena, até escolhas que produzam mudanças no enredo, levando a diferentes finais. Esse modelo interativo me fez ver o filme mais de uma vez, no intuito de conhecer todas as escolhas possíveis, sobre as quais não haverá spoilers aqui.

A forma interativa do filme é a novidade, já que a história segue a mesma fórmula da série: a mistura de tecnologias com temas que envolvam a subjetividade humana. Psicanalistas costumam se deliciar ao assistir a série Black Mirror, pois ela permite reflexões sobre temas como repetição, trauma, medo, memória etc…

No filme, em função da possibilidade de escolhas do espectador, fica subentendido que, dependendo do caminho tomado pelo personagem, mudanças acontecerão na história. Dessa forma, uma primeira questão se coloca, a das escolhas.

A premissa de que nossas ações produzem consequências e que não temos como saber o que aconteceria se tivéssemos agido de outra forma sempre nos levou à pergunta: e se eu tivesse feito aquilo diferente em minha vida?

Algumas pessoas podem, inclusive, ficar na inibição do ato, por serem completamente tomadas pela dúvida. Como escolher, se não sei exatamente o que produzirei futuramente com minha escolha de agora?

As pessoas podem até buscar oráculos (cartomantes) para que seu futuro possa ser previsto, na busca de uma proteção contra escolhas erradas. Felizmente, acabamos entendendo que não é provável que nosso destino já esteja escrito previamente, e temos que suportar sermos nós mesmos os escritores de nossas histórias. Essa ideia pode nos deixar no desamparo da falta de garantias de um futuro incerto, mas, ao mesmo tempo, também traz em si um gosto de maior liberdade. Somos, então , responsáveis pelo que fazemos e também pelo que não fazemos acontecer em nossas vidas. Quando tomamos em nossas mãos as escolhas, estamos com certeza num caminho de maior responsabilização.

O filme nos coloca também uma segunda questão: quem está no comando da mente que decide? Uma vez, minha filha ainda uma menina, perguntou-me: como ela saberia se o que ela pensava era ela que pensava ou se tinha sido seus pais que haviam colocado aquela ideia em sua cabeça. Achei esperta sua questão pois, certamente, no início da vida de nossos filhos, somos nós, os pais, que apresentamos o mundo para eles, que vivem, portanto, em considerável alienação. Respondi para minha filha que, no momento em que ela se apropriasse de uma ideia, essa agora seria dela. E também que ela seria responsável por sustentar essa ideia como sua. Penso que, naquela época, é claro que ela já produzia seus próprios pensamentos, as separações estavam se delineando com maior clareza, e ela buscava com sua pergunta poder constituir plenamente sua singularidade.

A condição de autonomia do pensamento de alguém depende dessa desalienação que precisa acontecer na relação com os seus cuidadores. A cria humana é a única que precisa permanecer mais tempo ligada intimamente com quem a cuida para poder criar as condições de separação. Mas a autonomia também pode ser questionada em alguma medida, tendo em vista as inúmeras influências que recebemos de tantas outra relações. Além disto, temos que considerar nosso inconsciente, que nos faz agir a partir de um saber que em geral desconhecemos. Então, alienação e desalienação vão constituir-se num processo dialético contínuo ao longo da vida.

Por fim, o filme nos coloca uma terceira questão, a do trauma que produz uma situação de aprisionamento na vida. A infância marcada por alguma situação de muita dor irá necessariamente impossibilitar a construção de alternativas para uma vida de melhor qualidade? Seria como ficar preso no pesadelo? As repetições, nas situações da vida que podem levar alguém a imaginar-se sempre no mesmo lugar, costumam dizer respeito a situações que ficaram marcadas na infância.

O psicanalista trabalha na perspectiva de que o paciente reconte sua história, considerando que os fatos passados não podem ser mudados, mas que temos ali um sujeito que pode, sim, ser transformado, frente às novas palavras hoje inseridas e associadas àquela história. Já não será mais a criança presa na fatalidade e na falta de recursos para lidar com o acontecido. Faz-se necessário buscar a criança que ficou paralisada naquele lugar e naquele tempo, trazendo-a pela mão aos dias atuais e possibilitando novas aberturas para uma nova história. Torna-se, assim, possível imaginar finais diferentes para uma mesma história.

Black Mirror Bandersnatch levanta estas três questões, mas não de forma tão otimista. A ficção pode andar de mãos dadas com a psicanálise gerando um campo fecundo de reflexões.

(*) Maria Ângela Bulhões, psicanalista membro da APPOA, psicóloga do ambulatório do Hospital São Pedro.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora