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1 de janeiro de 2019
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10:45

Alguma cor na solidão

Por
Sul 21
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Cena de Tinta Bruta. (Reprodução/Youtube)

Gerson Smiech Pinho (*)

A solidão é um sentimento corriqueiro, que qualquer um de nós já atravessou em maior ou menor grau em alguma circunstância. Tal vivência não implica necessariamente a ausência concreta de um semelhante, já que pode ser experimentada mesmo quando estamos acompanhados por alguém. Se, por vezes, associa-se às sensações de desproteção e desamparo, é também uma expressão possível dos limites que experimentamos na relação com o outro, da radical separação que compõe nossa condição enquanto humanos.

Com efeito, importa distinguir entre a experiência comum da solidão e aquela do isolamento, situação forçosa, na qual se constrói um abrigo, um anteparo que tem como objetivo resguardar do sofrimento e dos impasses oriundos de nossas relações com os outros. Este é um dos temas abordados em Tinta Bruta, produção recente de Márcio Reolon e Filipe Matzembacher, escolhido como melhor filme no Festival do Rio, além de ter recebido dois prêmios no Festival de Berlim. A narrativa apresenta com delicadeza, a angústia vivida por um jovem solitário, cuja condição de existência encontra-se em uma tênue fronteira. Se o relato é exposto de forma bastante sensível, nem por isso deixa de revelar a face brutal e a violência da vida em uma grande metrópole.

O itinerário de Pedro, personagem central da narrativa, principia em um tribunal, onde somos informados que está sendo julgado por uma situação que ocasionou sua expulsão da faculdade. Ficamos sabendo também que sua mãe já morreu e que seu pai desapareceu. Na parte inicial do filme, o laço mais significativo que mantém é com a irmã, que está prestes a partir para Salvador. Eventualmente, Pedro recebe também a visita da avó, que vem do interior.

Afastado da faculdade e com escassas relações pessoais, Pedro não estuda nem frequenta um emprego formal. Seu modesto rendimento deriva das danças eróticas que faz em frente ao computador para um público anônimo. Diante da webcam, com o corpo coberto por tinta fosforescente, metamorfoseia-se em Garoto Neon, identidade adotada durante as performances que realiza.

As imagens do filme percorrem a paisagem urbana que pulsa em meio ao concreto e às vias com seus passantes. Por vezes, fixam-se no olhar incógnito que provêm das janelas dos prédios. O filme estampa de modo exemplar a solidão urbana, ao retratar a cidade em sua vertente melancólica, opressiva, distante e violenta. É Porto Alegre, mas poderia ser qualquer outra metrópole brasileira.

Ao longo da narrativa, mesmo que não sejamos informados da idade exata de Pedro, sabemos que se trata de um jovem, que possivelmente esteja processando a passagem para a vida adulta. Por mais variado que possa ser o roteiro que orienta esse tempo da existência, o trânsito mais abrangente pelo espaço coletivo não acontece sem despender algum trabalho. Já a uma certa distância das relações familiares da infância, no movimento entre a adolescência e a idade adulta, surge o apelo para compor novos laços na esfera social mais ampla. Talvez, por esse motivo, os jovens sejam tão pródigos em revelar os sintomas que se instalam no tecido das relações pessoais de uma determinada época. A construção de tais relações pode se deparar com impasses profundos, sobretudo quando a expressão do sujeito se distancia da imagem almejada desde os ideais sociais hegemonicamente compartilhados, em uma cultura pouco afeita e tolerante à diversidade.

A certa altura do filme, somos advertidos de que Pedro era alvo sistemático de bullying por parte de alguns colegas, na época em que frequentava a faculdade. A história revela como um ato violento pode ser a expressão de um mal-estar acumulado solitariamente, ao longo de muito tempo. O ato irrompe como índice daquilo que não vai bem e que não tem condições de ser expresso de outra forma. Interpretação distinta da leitura banal e simplificadora que faz da agressividade um traço inerente e substancial atribuído a um sujeito.

Na pele do Garoto Neon, a internet surge como território no qual Pedro encontra algum olhar que o valoriza, mesmo que no mais completo anonimato. O corpo pintado com tintas fluorescentes enquanto dança marca uma diferença que distingue seu espetáculo dos inúmeros outros que proliferam pela rede de computadores. Através de sua performance, Pedro produz uma criação particular, que o representa singularmente em meio a massa amorfa. É por este caminho que estabelece um laço amoroso com Leo, bailarino que passa a acompanhá-lo em suas performances.

Se o isolamento pode ser expressão frequente de mal-estar, este pode agregar o peso da exigência de sociabilidade, identificada à felicidade a partir do discurso social. Acumular muitos amigos, estar cercado por outras pessoas, ser popular e bem relacionado é sinônimo de êxito e satisfação. Nesse sentido, empilhar seguidores e curtidas na rede social é tranquilizador e permite dormirmos tranquilos com o bom desempenho de nossa imagem. Curioso imperativo, pois paradoxalmente, ao lado dele, somos exigidos a um ideal de auto-suficiência e independência, valores bastante caros à cultura individualista que partilhamos.

A distância que nos diferencia e nos separa de qualquer um de nossos semelhantes é tão constituinte de nossa subjetividade quanto aquilo que nos aproxima e suscita identificação. Em meio a afinidades e oposições, em uma alternância que ora nos conecta e ora nos desliga, tecemos e desfazemos laços com aqueles que encontramos no curso da vida.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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