Colunas>Coluna APPOA
|
8 de janeiro de 2019
|
10:32

A República Luminosa (2018)

Por
Sul 21
[email protected]
A República Luminosa (2018)
A República Luminosa (2018)
Divulgação

Luciano Mattuella (*)

 A infância como um arquipélago remoto. Essa imagem há muito tempo me acompanha tanto na minha vida pessoal quanto no meu ofício de psicanalista. Tenho uma relação de fascínio e medo com tudo o que se refere aos mapas e à cartografia: lembro sempre de quando meus pais – ambos geólogos – me explicavam a noção de escala: quanto maior a escala, maior a amplitude do mapa. Quanto maior a escala, portanto, mais alto estamos do mundo: vemos mais território, mas não atentamos aos detalhes. Para ver de perto, é preciso renunciar ao anseio de ver tudo. O olhar dedicado é avesso à ambição: só vemos mesmo quando estamos perto. A psicanálise nunca seria a vocação de Ícaro: o que Freud nos ensina, em última instância, é que é impossível escutar alguém de longe: quanto mais tomados pelo desejo de ver tudo, menos conseguimos escutar. A psicanálise – assim como tantas outras práticas – é um exercício da proximidade.

Há como se ver as ilhas bem de alto, em escala ampla: assim, definimos seus contornos, suas fronteiras e temos uma ideia do relevo – do alto, ficamos presos ao empuxo pelo relevante. Mas para realmente conhecer um ilha, é preciso aterrissar e caminhar em seu solo, sentir no pé a temperatura da areia, encontrar os habitantes um a um, no detalhe da vida cotidiana. Se a infância é um arquipélago remoto, só nos é possível visitá-la parcialmente, cena a cena. A história de nossa infância é para sempre perdida e por isso mesmo é preciso que a inventemos.

Em seu romance “República Luminosa”, publicado em 2018 aqui no Brasil pela editora Todavia, o madrilenho Andrés Barba nos convida a um encontro em escala mínima. Barba conta a história da cidade de San Cristóbal, um lugarejo intervalado pela selva e pelo rio. O enredo do livro poderia ter saído de um roteiro de filme de horror: certo dia, começam a aparecer na cidade crianças desconhecidas; em um primeiro momento, essas crianças – que têm no máximo treze anos – passam a cometer pequenos delitos: furtos, vandalismos, ofensas. Aos poucos, entretanto, os atos vão se tornando mais e mais violentos, culminando em assassinatos e a produção de uma permanente aura de perigo e paranoia. As crianças – são trinta e duas, no total – falam um idioma diferente de todos os conhecidos, parecem ter uma lei própria e respeitar um código de conduta bastante particular. Entretanto, ainda são crianças: choram quando contrariadas, sentem medo dos mais velhos – alguns até despertam um certo afeto caridoso.

“República Luminosa” pode ser lido de diversas formas: visto bem do alto, é uma narrativa de horror que nos prende pela curiosidade: o que os habitantes de São Cristóbal farão com essas crianças? Até onde vai essa escalada de violência? Já nesse nível mais superficial da narrativa Barba coloca em xeque a noção de pureza da infância: há uma desconstrução da noção clássica da criança como um ser angelical, estandarte da bondade e ingenuidade. Neste sentido, o romance faz eco à proposta de Freud que causou tanto escândalo entre os doutos homens da ciência da época vitoriana, a ideia de que o infantil é habitado por uma certa perversidade, de que o corpo da criança é também erógeno. Freud também explicitou que no nosso corpo adulto reverberam excitações e desejos infantis.

Um retorno às avessas de um certo anseio sádico infantil podemos ver hoje em dia no nosso país através: nos primeiros dias de seu mandato, nosso novo presidente da República (essa, não tão luminosa) levou adiante medidas segregatórias que têm como alvo aqueles que não estão inscritos dentro de uma suposta moralidade liberal: os indígenas, a comunidade LGBTQ, precisamente estas minorias que questionam os lugares do sexual e do corpo. O sadismo infantil redivivo pode ser visto na celebração, às vezes ruidosa, dos apoiadores destas medidas: como se um desejo infantil de apagamento do diferente (“não se parece comigo, tenho que eliminar”) estivesse finalmente sendo autorizado. Neste sentido, uma leitura mais de perto do romance de Andrés Barba acaba sendo interpretativa do nosso momento atual: as trinta e duas crianças vêm “de fora” – sabe-se lá de onde -, falam outra língua, operam a partir de outro código moral. Elas ocupam o lugar do estrangeiro.

Nesta via, “República Luminosa” pode ser lido também como uma alegoria: as crianças neste lugar dos estrangeiros que, quando surgem no horizonte, convocam os habitantes de São Cristóbal a questionarem suas próprias leis e modos de organização social. Irão ser violentos contra estas crianças? As mandarão embora, ainda que sejam tão jovens? O estrangeiro, o diferente, é assustador não somente por seu caráter de estranheza, mas também porque ele faz com que nos interroguemos pela artificialidade contingencial daqueles preceitos que nos parecem tão naturalizados.

As trinta e duas crianças do romance de Barba são como a própria criança que habita cada um de nós: quando ela invade as fronteiras supostamente bem delineadas de nossa vida adulta, ela nos coloca em contato com a fragilidade de nossa identidade. Nos julgamos continentes, mas ignoramos nossos insulares desejos eróticos, mortíferos, odientos… Estabelecer rotas de navegação a essas ilhas desconhecidas – ainda que tão familiares – permite, no melhor dos cenários, que sejamos também acolhedores com a diversidade daqueles que falam outra língua. Aliás, o trabalho psicanalítico também pode ser visto assim: como a forma de suportar a ideia de que esse diferente que nos assombra está dentro de nós. Essa ilha que parece isolada faz parte do nosso arquipélago íntimo.

(*) Luciano Mattuella é psicanalista, membro da APPOA.

§§§

As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora