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11 de dezembro de 2018
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10:36

Rasga coração – Notas para um futuro hoje

Por
Sul 21
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Rasga coração – Notas para um futuro hoje
Rasga coração – Notas para um futuro hoje
Divulgação

Robson de Freitas Pereira (*)

“Quién dijo que todo está perdido
yo vengo ofrecer mi corazón”.
Fito Paez

Rasga Coração, o filme, adaptação da peça de Oduvaldo Vianna Filho – Vianinha, está nos cinemas. Direção de Jorge Furtado e produção dos talentos da Casa de Cinema (completando 30 anos bem vividos) entre eles Nora Goulart, Giba Assis Brasil e Ana Luiza Azevedo.

O roteiro adaptado e a articulação dos diversos setores envolvidos no trabalho cinematográfico produzem no espectador este raro e, feliz, efeito de emoção e pensamento. A começar pelo desempenho dos atores. Jovens e seniores (se é que podemos falar assim de Marco Ricca, Drica Moraes e Nelson Diniz) estão todos com uma atuação não só convincente, mas também emocionante no sentido de passar as contradições, os momentos de vida paradoxais que vivem os personagens, tanto em sua juventude nos anos 70, quanto no confronto com suas memórias e com os filhos na atualidade.

A presença viva dos fantasmas do passado de Manguari Pistola (Marco Ricca) – o mais constante: Lorde Bundinha, irônico, pícaro e duro como os entusiasmados artistas da época; também é um recurso que demonstra a intensidade dos conflitos vividos por Manguari.

A edição, logo na abertura colocando Copacabana em cena outra vez, parece uma homenagem a Eduardo Coutinho e seu Edifício Master. Copacabana é um dos exemplos mais crassos das contradições do Brasil atual: lugar de desejo dos suburbanos do Rio, principal ponto turístico internacional , nossa Miami pela faixa etária dos aposentados e pelas ruas e apartamentos cada vez mais povoados por uma classe média “de quarto e sala”, ambulantes e moradores das comunidades da zona sul. As verdadeiras ruas do bairro ficam entre a praia (av. Atlantica) e a Tonelero (alguém se lembra do atentado ao major Vaz?); território de trabalho do delegado Espinosa [1] – titular da 10ª DP, na Hilário de Gouveia- para trazer mais um pouco da ficção que estrutura a verdade de nosso cotidiano.

A trilha sonora, a fotografia e suas cores quentes nos fazem sentir a atmosfera dos anos 70, seja nos bares, nas festas, mas também nas ruas sombrias de onde a repressão pode surgir a qualquer momento.

Os conflitos são atualizados: da luta pelas liberdades democráticas e contra a ditadura, assistimos o movimento de ocupação das escolas. Nesta atualização algumas coisas continuam imutáveis: o preconceito racial, moral, de classe e a impossibilidade de dialogar com o diferente– a cena da discussão entre os estudantes secundaristas é exemplar para demonstrar o envelhecimento das antigas propostas políticas (representadas pelas idéias paternas) e, simultaneamente o comportamento de quem tem a melhor retórica- mesmo que incorreta, leva a direção do movimento. O sofrimento dos outros é pouco levado em conta, frente a necessidade da “ação imediata”.

O conflito geracional, com os pais, também mostra sua permanência. Nena, a mãe, com suas posições apaixonadas – para dizer o mínimo, nos enviam à intimidade de nossos próprios paradoxos na relação com os filhos, com o sexo e a moralidade reinante ontem e hoje. A estudante de ontem, hoje dona de casa, mostra-se preocupada em reformar o apartamento herdado do sogro, e se agarrar ao seu mais precioso bem – o filho. Incita o marido a agir – algumas cenas impagáveis da relação conjugal: “você precisa falar com seu filho”.

Os jovens revolucionários de ontem que se transformaram em meros habitantes dos edifícios de classe média (baixa) de Copacabana.

A mostração dos impasses, não se resume aos conflitos geracionais. Eles ajudam a articular individual com o coletivo. Os militares que estavam no poder, agora dão as cartas na educação particular e em outros negócios. Vamos visualizando a complexidade de nossa realidade atual. Algumas contradições se insinuam e vão rasgando lentamente o coração e as mentes dos espectadores. Não é mais um “explode coração “ que não dá mais prá segurar. São pequenas explosões íntimas, sulcos no coração do Brasil, pouco a pouco, ao longo dos anos, no entardecer dos sonhos, na projeção de querer que os filhos façam o que os pais jovens não fizeram, na acomodação da vida cotidiana ordinária. Rasgo na carne, assim como no centro dos sentimentos. “Coração americano/acordei de um sonho estranho/no corpo e na cidade/ um sabor de vidro e corte”, dizia a canção popular[2].

As cartas estão na mesa: cartas do passado, cartas do futuro, jogo no presente. Talvez este seja o tempo de elaborar o mais profundamente que conseguirmos. Freud ensinou que é impossível eliminar o mal-estar na cultura; podemos reconhecer a impossibilidade, mas justamente por isto é que o desejo se viabiliza e possibilita enfrentar as repetições onde “vivemos como nossos pais”, sem soluções mágicas. Não se justificam mais evitar os temas delicados porque supostamente “dariam armas ao inimigo”.

Sabemos que o tempo adequado para fazer o luto é hoje. A promessa de deixar o bolo crescer para distribuir depois é uma miragem. Esperar o “momento oportuno” para fazer a análise com navalha na carne, será uma espera frustrada. O tempo é hoje, e a ficção escrita ontem, se renova com ciência e arte (neste caso cinematográfica)nas mãos de quem se dispõe a fazer o luto, encarar os medos e reinventar as esperanças. Afinal, outro dramaturgo escreveu uma vez: brasileiro, profissão esperança. Hoje sabemos; para o bem e para o mal. “Porque se chamavam homens, também se chamavam sonhos/e sonhos não envelhecem” desde que sejam reinventados a cada tempo, fazendo com que rasgar o coração seja um ato produzido com coragem e amor.

Notas

[1] Delegado Espinosa, personagem dos livros de Luiz Alfredo Garcia-Roza, cujo território de trabalho fica entre o bairro Peixoto e Copacabana; ou seja do Arpoador ao Leme.

[2] “San Vicente”, Milton Nascimento e Fernando Brandt.

(*) Psicanalista; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Publicou, entre outros: O divã e a tela – cinema e psicanálise (Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2011) e Sargento Pimenta forever (Porto Alegre: Libretos, 2007).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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