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18 de dezembro de 2018
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10:40

Coletes Amarelos : uma revolta popular

Por
Sul 21
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Ministère de l’Intérieur/France

Alfredo Gil (*)

Há um mês que a França inteira está em estado de ebulição, e, como se sabe, alguns cantos do país já explodiram e pegaram fogo. A faísca que detonou o movimento de contestação social nomeado “coletes amarelos” foi o aumento de impostos sobre os combustíveis. Ela é causa inicial, mas não é a única. O sentimento profundo de injustiça que anima esta revolta popular é composto de diferentes sedimentos que se acumularam ao longo de vários anos e que devem ser contemplados no conjunto para se compreender o fenômeno. Por outro lado, é difícil diagnosticar um movimento social tão heterogêneo e de tamanha amplitude, composto por diferentes categorias sociais, sem liderança ou porta-voz oficial. Historiadores, sociólogos e analistas políticos se referem à Revolução Francesa, Comuna de Paris e Maio de 68, para tentar conceituar a relevância do que vem acontecendo.

Este tipo de revolta é o resultado, também, da discrepância que aumenta exponencialmente entre a riqueza do alto da pirâmide social e os trabalhadores de baixo, que são bem mais numerosos. Mais ainda, não somente a opulência dos mais ricos progride vertiginosamente, mas uma parte da classe média empobrece e se aproxima dos mais pobres que contam os centavos para fechar o fim de mês. O economista Thomas Piketty relatou na semana passada que entre 1990 e 2017 as receitas de imposto sobre as grandes fortunas francesas quadruplicaram graças ao acúmulo espetacular de capital, enquanto o produto interno bruto (PIB) do país apenas duplicou. Neste contexto, como evitar uma revolta quando a manchete do jornal Le Monde estampa o benefício obsceno das 40 empresas francesas mais ricas – CAC 40 – na bolsa de valores, em 2017, 93.400.000.000 ? São 24 % a mais que 2016.

Deste modo, pecebe-se um descompromisso da elite com as camadas desfavorecidas da sociedade, incrementando o aumento das desigualdades e injustiças, fragilizando profundamente o pacto social, e trazendo por consequência inevitável o desaparecimento da solidariedade necessária para que se faça a redistribuição de riquezas. A reforma fiscal do governo de Emmanuel Macron, como demonstrou Piketty, favoreceu um punhado de gente, que detêm grandes fortunas, e desfavoreceu claramente a classe média e mesmo os aposentados de baixa renda. Como evitar uma revolta quando o sentimento profundo da população é de que os representantes políticos compactuam com o agravamento da desigualdade e participam da ganância dos privilegiados, enquanto o discurso que endereçam ao povo que representam insiste sobre a redução da dívida pública e propõem como única solução o corte nas despesas do serviço público que tem por missão o bom funcionamento das escolas, dos hospitais, dos transportes, etc.

O problema, assim colocado, não tem sido uma particularidade francesa, ou seja, globalmente, temos, de um lado, a cupidez no âmbito das finanças de um grupo de privilegiados sem compromisso com a sociedade e, de outro, um Estado endividado – mais ainda para suturar as hemorragias provocadas pelas orgias financeiras daqueles, como em 2008 – administrado por tecnocratas. Diante deste embate, as soluções de cada país variam tanto do ponto de vista político, ideológico quanto social. Mas, infelizmente, muitas respostas coletivas têm sido a promoção de ações extremistas e ideias radicais.

Para ilustrar, permitam-me um apanhado rápido e grosseiro, mas factual.

A política atual brasileira, por exemplo, tem conseguido realizar de modo magistral a canção de Caetano Veloso, composta em 1991, que denunciava uma forma “tipicamente americana” (do norte) em que “branco é branco, preto é preto e a mulata não é a tal; bicha é bicha, macho é macho, mulher é mulher e dinheiro é dinheiro”.

Esta fala direta, sem nuance – em que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa – tem sido a receita de cooptação das massas, praticada por alguns líderes populistas. Assim, talvez não seja por acaso que as primeiras felicitações pela vitória de Jair Bolsonaro foram anunciadas por D. Trump e M. Salvini. Logo, qualquer semelhança entre esses três homens no modo de exercer o poder não é mera coincidência.

As afinidades da política brasileira com os trapalhões italianos do Primeiro Ministro, Matteo Salvini, que desprezam e pisoteiam, literalmente, (https://www.youtube.com/watch?v=E69RXOS8TiQ) as instituições europeias e que se aplicam a apontar os imigrantes como sendo a ameaça contra o bem-estar nacional, ilustram também esta forte tendência populista.

Com mais elegância e sem o personalismo do trio – Bolsonaro, Trump, Salvini -, mas não menos egocêntrica, é a Inglaterra do Brexit, que manifestou sua necessidade de afirmação de unidade nacional, autossuficiente.

Este clima protecionista, de cada um por si, oferece a alguns indivíduos o sentimento de segurança, de pertencimento a “uma” nação, mas precisa sustentar sua unidade no repúdio cotidiano do Outro: país, cor, raça ou religião. Em outros termos, a nação se transforma numa instância onde o povo se reúne para afirmar suas fronteiras, vangloriar seus particularismos, exacerbar valores, sobretudo, morais, ao invés de ser um lugar de convívio e de compartilhamento, onde as diferenças de cada um, sejam lingüisticas, culturais ou religiosas, são fontes de enriquecimento.

Neste sentido, o braço direito da campanha eleitoral de Trump, Steve Bannon, trabalha minuciosamente, de olho nas próximas eleições do parlamento europeu no mês de maio do ano que vem, para catalisar os partidos de extrema direita: além dos referidos acima, temos a Hungria de Orban, da família Le Pen na França, do AfD alemão, e tantos outros. São os promotores do populismo europeu.

Em meio a esta união de porcos espinhos em que cada um delimita seu terreno para não se picarem uns nos outros, os coletes amarelos dissonam da sinfonia populista. Nenhuma ideologia, seja de (extrema) direita ou de (extrema) esquerda, consegue apropriar-se do movimento, que por sinal recusa, por enquanto, toda forma de representação ou porta-voz oficial junto às instâncias governamentais. Já a mídia, no seu imediatismo, se esforça em vão a definir e a caracterizá-lo.

São homens, mulheres, jovens e aposentados que não buscam o conforto nacionalista que designa o semelhante como culpado do empobrecimento em que vivem. Ao contrário da massa alienada populista que se deixa hipnotizar por um representante que encarna o poder, os coletes amarelos são um movimento acéfalo, mas que se une consistentemente em torno de reivindicações e ideias que expressam o desprezo com o qual tem sido tratado, e que, além de poder aquisitivo, exigem dignidade e respeito. Ouviu-se mulheres declararem que fariam 500 km até Paris para se manifsetarem sem se intimidarem com o risco de levarem pauladas por acidente ou pela polícia. Houve jovens que, longe de serem violentos, quebraram lojas em protesto, para que se fizesse ouvir a brutalidade que sofrem quotidianamente, coisificados por um regime neoliberal que numeriza e desumaniza o trabalho.

Emmanuel Macron, que se autodesignou jupteriano, mas que representa a ala progressista no cenário geopolítico, em oposição aos nacionalistas, pode agradecer pelos coletes amarelos não terem caído na tentação de reivindicarem protecionismo populista. O fato de que uma revolta ocorra em torno de ideias e reivindicações sedimentadas pelo sentimento de injustiça e não em torno de uma personalidade, e por isso qualifico-a de acéfala, me evoca estranhamente o momento em que a França, para mudar o rumo de sua história, a um momento dado, teve que decapitar o Rei. Deste ponto de vista, a imagem chocante, no Arco do Triunfo, do símbolo nacional francês, Marianne, que teve seu olho direito lapidado, pode ser interpretado não como simples vandalismo, mas como ato simbólico, em que o desprezo para com o povo é, antes de tudo, desprezo para com os valores da República.

(*) Alfredo Gil é psicanalista em Paris; membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e da Association Lacanienne Internationale (ALI). E-mail: [email protected]

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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