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25 de dezembro de 2018
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10:50

Arte política de Ai Weiwei – migrantes, refugiados, segregados

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Sul 21
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Reprodução/Youtube

Marcia H de M Ribeiro (*)

Sunflower seeds (2010), uma das setenta obras de Ai Weiwei em exposição na OCA em São Paulo, é formada por milhões de sementes de girassol em porcelana pintadas a mão por artesãos. Grandiosa em seu conjunto, cada peça revela o traço singular do pintor e do artista que a concebeu. Não há sementes iguais. A obra alude a elementos da cultura chinesa amalgamados nesse pequeno objeto: ao laço que se inaugura ao presenteá-la como gesto de cortesia, ao recurso alimentar em tempo de penúria, e também ao cidadão-girassol guiado pelo governante-sol, frequentemente representado nos cartazes de propaganda política de Mao Tsé-Tung. Girassóis também são migrantes.

Seguindo a trilha aberta pelos girassóis de Ai Weiwei, encontrei outros de seus fortes trabalhos interpretativos do mundo contemporâneo. Arte-ato. Arte-política. Conjuga o que nos afeta com a ação que desacomoda nossas crenças. A exposição So sorry (2009-2010), exibida no museu Haus der Kunst em Munique, se inscreve nessa vertente. É efeito de uma torção no percurso do artista afetado pelo terremoto que dizimou parte da população na província de Sichuan em 2008, e pelo silêncio imposto pelo governo chinês sobre os desdobramentos da tragédia. Ai Weiwei desobedeceu. Viajou à região desolada e, entrevistando familiares, registrou mais de cinco mil crianças mortas nos escombros das escolas. Em maio do ano seguinte publicou a lista em seu blog e fez saber o até ali recusado.

A instalação Remembering, outra das obras naquela exposição, é formada por milhares de mochilas escolares coloridas que recobriam a fachada do museu. Nela está escrita, porque a obra memorial continua disponível na Internet, uma frase em mandarim: “por sete anos ela viveu feliz nesta terra”. Também Straight, incontáveis vergalhões de ferro destorcidos, retirados dos escombros das escolas. Põe em ato a resistência ao apagamento forçado da memória. “Se a gente destrói a memória compromete a verdade”, afirma o artista. Segue por esse caminho seu compromisso com os direitos fundamentais do homem.

So sorry cumpriu sua função, ressoou no mundo ocidental. Mas não só. Ai Weiwei foi raptado pela polícia chinesa e confinado por mais de dois meses. Dali saiu para prisão domiciliar e ficou sob vigilância constante durante quatro anos. A casa e o ateliê controlados por câmeras. Seus passos seguidos e filmados na rua por policiais. A vida cotidiana sob a mira do governo, “tudo sob controle”. Ai Weiwei reduplica o olhar. Instala câmeras em sua casa e passa a transmitir a vida íntima pela Internet em tempo real. Logo depois será libertado, e encontrará refúgio em Berlim.

Seu interesse pelos migrantes forçados emerge nesse momento em que se vê exilado pela segunda vez. Era criança quando seu pai e muitos outros intelectuais foram constrangidos a abandonar as letras pelo trabalho forçado na Mongólia. Parte da estratégia para abolição do pensamento crítico da população, secundada pela queima de livros, obras de arte, e a adoção da escola-doutrinação totalitária desde a infância. Cresceu nesse tempo de sucessivos golpes à liberdade, marca do regime iniciado com Mao Tsé-Tung. É no mínimo irônico que as estratégias violentas para soterrar o pensamento crítico e a liberdade de expressão tenham recebido o nome de “revolução cultural”.

Human FlowNão existe lar se não há para onde ir (2017), é o documentário mais recente de Ai Weiwei. Começou com a câmera de seu celular em 2015, na ilha de Lesbos, registrando o desembarque dos migrantes após travessia noturna do mar Egeu em bote inflável. Ápice do processo de contenção do ingresso, pelos países europeus, dos grandes movimentos de migração forçada por conflitos tribais, perseguições político-religiosas e pela fome em territórios conflagrados por guerra ou severas mudanças climáticas. Ai Weiwei nos conduz com cuidado, dirige nosso olhar para a questão complexa dos campos de refugiados. O de Idomeni, formado por barracas improvisadas sobre a linha de trem na fronteira entre a Grécia e a Macedônia, é paradigmático de um não-lugar. Reúne migrantes cativos de um tempo suspenso entre o exílio e o asilo.

Élisabeth Vallet, pesquisadora canadense, registra que nunca na história moderna foram construídas tantas barreiras em fronteiras como nos anos 2000. Após a queda do Muro de Berlim, os anos 1990 foram inspirados pelo ideal de um “mundo sem fronteiras”. Onze muros ficaram intocados. Como todo ideal carrega em si um irrealizável, 2016 chegou contabilizando setenta novas barreiras em fronteiras, e 65 milhões de pessoas em deslocamento forçado. Incremento de práticas de isolamento por racismos, movimentos nacionalistas de extrema-direita e problemas econômicos, identificando o imigrante como inimigo que usufrui, espolia as riquezas e ameaça o lugar do residente do país. Interfere na fruição do gozo. Os que ficam sem lar, mas também os que fecham fronteiras padecem dos efeitos dessa segregação.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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