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13 de novembro de 2018
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10:40

“Vocês ainda estão vivos?”

Por
Sul 21
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Reprodução

 Lucia Serrano Pereira (*)

Encontro com o livro que junto a este título acrescenta: fragmentos sobre trauma, memória e herança. Tem leituras que ajudam a acompanhar nossos tempos, as questões que se apresentam, com as quais lidamos, e se tornam nossas companheiras por trechos do caminho, mais permanentes ou mais contingenciais.

Aqui, três termos de grande concentração. Trauma, memória e herança. E que foram reunidos de forma muito particular, ao mesmo tempo íntima, familiar e coletiva. Daniel, jovem estudante vive no Brasil e viaja a Israel, onde nasceu, para um intercâmbio. Estando lá se organiza uma excursão temática sobre a Shoah para a Polônia, estudantes de vários países.

Seus avós vivem em Israel, e ele vai visitá-los. Morando no Brasil desde a infância, só havia encontrado os avós por duas vezes, desde então. Ao final da viagem, 2008, o re-encontro.

Até então a Shoah, a II Guerra, eram assuntos importantes, relevantes. Mas nos seminários de preparação à incursão na Polônia acontece algo que reverbera em outro ponto. Ouve um testemunho, uma senhora idosa que fala de sua infância polonesa, da passagem pelos campos de concentração, e por fim, da libertação. E lhe ocorre que nunca tinha escutado justamente a história de seus avós, eles mesmos sobreviventes da Shoah. E é o que pede a eles. Para sua surpresa dizem que não podem ajudá-lo, que estavam velhos e já não se lembravam dos detalhes. Por que esta resposta? Como entendê-la?

Ele insiste e Izhak e Miriam terminam por entregar umas gravações, vídeos que haviam feito há anos por encomenda de um programa de pesquisa americano. Começam a assistir na TV, o mal-estar entre eles se instalando. Daniel decide então copiar os vídeos para assistir no Brasil. E quando chega de volta descobre que havia trazido apenas telas pretas, sem nada. Nem áudio, nem imagem. Frustração.

É só em 2014, acompanhando o trabalho da Comissão Nacional da Verdade, que retorna às questões da memória e dos efeitos traumáticos, desta vez relativos aos efeitos que se mantém nas famílias dos desaparecidos políticos, daqueles que atravessaram os tempos da ditadura. Nova volta. Decide retomar então a busca dos testemunhos dos avós. Encontro com as narrativas do trauma, que ao mesmo tempo dizem e lidam com a impossibilidade de transmitir aquilo que ficou paralisado, coagulado, truncado em suas histórias de vida.

E o trabalho acontece, agora testemunho, leituras, pesquisa. Outro momento.

“O que? Vocês ainda estão vivos?” – fragmento de um dos testemunhos – é a pergunta que Izhak recebe quando volta à sua casa, ao fim de tudo, da guerra. “A primeira pergunta que eu simplesmente não soube responder”, ele diz.

Daniel busca a transmissão.

E salta do livro, como efeito do traçado a questão/efeito: o que é tornar-se um herdeiro? Como pensar o trabalho de herdar? Como é possível herdar?

Perguntas que abrem uma complexidade viva, ativa, pulsante.

Herdar como operação subjetiva. Como movimento que faz furo nas fixações. Como poder encontrar de que modo podemos estar imbricados no traumático que concerne às histórias vividas pelos outros. Herdar pelo desejo de escutar e de acolher, e mesmo de se reconhecer parte disso. Para que seja possível recompor não um passado ou algum tipo de retorno (impossível, de qualquer modo), mas novas possibilidades de viver.

Herdar para não nos sentirmos tão sozinhos e para que possamos transmitir. Romper com a “cadeia de transmissões interrompidas” oferecendo outro rumo, diferente do que incorporar e repetir.

“O lugar do herdeiro, em sua transitoriedade e instabilidade, é construído justamente nos espaços vazados que caracterizam o testemunho e a herança”, vai concluindo Daniel.

O que fica como apontamento importante: é preciso “abrir espaço” para herdar. Posição ativa que passa por suportar as brechas incertas, incompletas, das narrativas que se transmitem; aceitar o que de sintomático também vem na transmissão ( para poder fazer algo com isso); reconhecer os limites do que foi a experiência do outro e mesmo das outras gerações, para seguir compondo movimento.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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