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2 de outubro de 2018
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10:48

Tempo de compreender, não há soluções mágicas

Por
Sul 21
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Tempo de compreender, não há soluções mágicas
Tempo de compreender, não há soluções mágicas
“Que permaneçam todas as instâncias que nos fazem pensar, dialogar, aprender”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sandra Djambolakdjian Torossian (*)

Era um dia ensolarado. Saio à deriva. Caminhante. Paro ao encontrar uns jovens. Falam de suas experiências de aprendizagem. Sorrio ao escutar o que dizem. Me levam ao tempo da infância. As lembranças invadem meu caminho. O sol aquece as memórias.

Me vejo lá, igual a eles, com meus amigos, falando sobre a escola. Lembro da nossa ingenuidade. Imaginávamos que olhar para a matéria era sinônimo de aprender. Se isso não acontecesse, não éramos bons. Como que se aprender não desse trabalho.

Alguém buzina. Acordo dos meus devaneios. A realidade se impõe. Uma briga no trânsito termina em discussão política. Um dos motoristas grita ofensas contra o candidato do outro, referindo-se a imagem estampada no carro. Diz ele que o Brasil precisa de choque, de uma solução definitiva. De alguém que tome o poder para arrumar o que está errado. Corrupção. Só uma pessoa é capaz de fazer isso. Vagabundos, tem que acabar com os vagabundos. Com os que não trabalham.

As palavras dançam no pensamento: vagabundos, os que não trabalham. Trabalhar: lembro dos jovens que acabei de escutar, lembro de mim. Os que acham que aprendem por um passe de mágica.

Lembro de uma conversa que tive recentemente numa escola. Quando discutíamos da necessidade dos adultos sustentarem o desejo de aprender das crianças. Elas tendem a desistir no primeiro obstáculo, é aí que os adultos precisam sustentar a persistência. Precisam garantir que haverá aprendizagem. Garantir que juntos poderão superar os obstáculos. Não podem tomar o primeiro “não sou bom” como desistência. Sim, aprender dá trabalho, não há mágica.

As palavras voltam a dançar. Solução definitiva, choque. Não gosto do que me vem à lembrança: “solução final”. Uma solução de extermínio. O que é mesmo que se quer exterminar? Vagabundos, que não trabalham.

Um paradoxo, penso. Soluções definitivas e soluções finais, assim, no choque, exterminam o trabalho. O trabalho de sustentar a persistência e a possibilidade de aprender. O trabalho coletivo na busca da superação de obstáculos. Siga o líder, não pense, obedeça. Não perca tempo, trabalhe.

Um novo diálogo. Desta vez Lacan é meu interlocutor imaginário. Os tempos. São três: o de ver, o de compreender e o de concluir. Não basta ver para concluir. Não basta ver a matéria para aprender. Não basta se incomodar com o cenário político para resolver. Entre ver e concluir há o tempo de compreender. Um tempo que precisa de olhares e pensamento.  O que vejo, o que faço com o que vejo, o que os outros fazem a partir do que faço, tudo isso, em pensamento, me leva a concluir. Precisa-se de tempo, compreender dá trabalho, não há mágica.

As soluções mágicas exterminam o tempo de compreender. Exterminam o tempo de trabalhar. Há uma ilusão de trabalho. Ao ver e rapidamente concluir reduz-se, ao mínimo, o jogo de olhares. Não se entra no jogo, as vezes sofrido, de fazer com os outros, de pensar com os outros. Extermina-se o trabalho de sustentar um fazer com quem pensa diferente, com quem se vê diferente, com quem age diferente ao meu agir. Extermina-se o diálogo, a troca de ideias. Exterminam-se as dúvidas provocadas pelo encontro com o que não é igual, com aquilo que não é conhecido. Siga o líder, não pense, obedeça.

As palavras dançam novamente. Vagabundo, solução definitiva. Elas giram, rodopiam. Vagabundo, quem? Solução definitiva, qual?

O sol volta a me aquecer. Penso naquele que não quer trabalhar. Aquele que não quer se ver, se pensar com os outros, se ver nas diferenças. Aquele que extermina o tempo de compreender. Que vê um incômodo e quer sua rápida solução. Extermínio do trabalho. Vagabundo? Siga o líder, não pense, obedeça.

Solução definitiva. Sim. Que permaneçam todas as instâncias que nos fazem pensar, dialogar, aprender. Que sustentam o tempo de compreender. Assim não precisaremos de soluções mágicas que nos levem a desistir de ensinar, de aprender e nos levem a ofender e querer exterminar quem nos incomoda. Não precisaremos de líderes nem de “mitos” que entorpeçam nosso pensamento.

(*) Psicanalista, membro da Appoa, professora do Instituto de Psicologia/UFRGS

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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