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23 de outubro de 2018
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10:30

Elogio à resistência: “Uma noite de 12 anos”

Por
Sul 21
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Elogio à resistência: “Uma noite de 12 anos”
Elogio à resistência: “Uma noite de 12 anos”
Reprodução/Youtube

Marcia H. de M. Ribeiro (*)

Y si este fuera mi último poema
insumiso y triste
raído pero entero
tan solo una palabra escribiría: compañero.

(Mauricio Rosencof para Eleutério Fernàndez Huidobro. Paso de los Toros, em algum dos 4323 dias vividos embaixo da terra)

“Estando incomunicáveis no calabouço, havíamos aberto uma janela para a vida reinventando o Morse”. Assim resume Maurício Rosencof um dos atos de resistência, pela palavra, que os manteve vivos. Uma noite de 12 anos (2018), dirigido por Álvaro Brechner, foi ovacionada na última mostra internacional de cinema de Veneza. Continua produzindo esse efeito noutras salas de exibição pelo mundo, e não foi diferente na sessão em que o assisti recentemente em Porto Alegre. Difícil ir embora quando a luz acendeu e na tela rolavam os créditos. Um pouco mais com eles nos faria bem nesses tempos em que o ódio procura todas as brechas para se impor como regra soberana das relações.

A história nos interpela sobre viver em situações limite, cara a cara com o inferno. Reconstitui parte dos 4323 dias de três líderes – Jose Mujica (Pepe), Mauricio Rosencof (Russo) e Eleutério Huidobro (El Ñato) – do Movimento de Libertação Nacional, Tupamaros, sobre sentenciados ao silêncio e ao isolamento em calabouços de quartéis do Uruguai entre 1973 e 1985. Doze anos. Solidão e silêncio. Suspensos por pontuais e efêmeros contatos com a família. Rompidos por singelos potentes atos de sublevação, como propõe Didi-Huberman, por quem estava dentro e fora da prisão. Resistência que foi também ato, aqui e ali, de um e outro carcereiro. Se por piedade, solidariedade, ou por empatia, não sabemos. O certo é que Rosencof recebeu uma laranja passada escondida por baixo da porta da cela em tempos de fome e sede arbitrária e deliberadamente impostas.

Nesse ponto, um traço em comum com o filme A vida dos outros (2006), dirigido por Donnersmarck. Na Alemanha oriental, um policial da temida Stasi é incumbido de espionar um dramaturgo e sua companheira, atriz de teatro, para prendê-lo por conspiração ao regime. Ele não espera ser afetado pelo que escuta tampouco se reconhecer no outro, até ali inimigo (dele?) do regime, e desde esta outra posição subjetiva omite informações dos relatórios, que livram o dramaturgo do pior.

Na Universidade de Yale em 1963, o professor Stanley Milgran conduziu um experimento sobre obediência irrefletida à autoridade. Como nota, vale lembrar que dois anos antes Adolf Eichman dera seu testemunho sobre o genocídio, justificando ter ‘apenas’ cumprido ordens. Quanto ao projeto de Milgran, um voluntário na função de professor e um aprendiz a quem eram dirigidas perguntas, ficavam em salas separadas interligadas por um equipamento elétrico. Sob a falsa premissa que a punição estaria associada à aprendizagem, eram estimulados a punir os erros do aprendiz com choques crescentes, até a voltagem máxima: “risco de morte”. Eles desconheciam que na outra sala havia um pesquisador que errava deliberadamente e não recebia choques, embora ouvissem suas queixas e súplicas para suspenderem a tortura. Muitos voluntários, apesar de algum desconforto moral, pararam ao chegar à voltagem máxima. Outros, no entanto, e são estes que interessa destacar, foram senhores da mão que parou de apertar o botão antes do fim.

O ponto em que se articulam as três narrativas revela essa capacidade que alguns humanos têm de, mesmo em situações infernais, resistir ao mal, reconhecer a humanidade no semelhante, e num gesto dom transmitir o melhor de si: a laranja rolada escondida por baixo da porta da cela, a mão que escreve outra versão para os fatos ou a que recusa obedecer à ordem espúria.

O filme de Brechner continua reverberando. Desafia-nos a pensar na força do desejo mesmo em situações de extrema crueldade. Faz um elogio à resistência, que se mantém como chama acesa pelas fagulhas do desejo e do amor. – Você tem que resistir, e não deixe que te matem, ordena a mãe de Pepe numa das raras visitas vigiadas. Coloca luz na capacidade humana para reinventar a conexão com o semelhante quando a ordem é calar, morrer por desamparo, enlouquecer na solidão. Rosencof e Huidobro pactuaram pelo “quase” código Morse que atravessava os muros para alcançar o ouvido do amigo companheiro no outro calabouço: “se um de nós sair com vida vai dar testemunho do vivido”. Conseguiram. O livro, Memorias del calabozo (1987), do qual compartilham autoria, é obra que inspira o roteiro do filme.

O desejo também levou Pepe Mujica ao senado e depois ao cargo de presidente eleito de seu país por imensa maioria. Não foi o ressentimento ou a expectativa revanchista o motor de seu projeto de governo. Rosencof resumiu bem a motivação politica, que ainda os anima, em sua participação no programa Café Literario. O entrevistador lhe propõe responder a um jogo associativo de palavras. – Felicidade? – Para todos, responde sem titubear. Homens com qualidades. Fosse eleitora uruguaia não teria duvidado votar em pessoas que compartilham da convicção que todos têm direito a seu quinhão de felicidade.

Afinal, companheiros, estamos no mesmo trem, no mesmo mundo, numa mesma época e podemos eleger que histórias vão nos representar. As escritas do ressentimento ou as de aposta na felicidade para todos? Ainda que possa ser qualificada como utopia, é bom horizonte a perseguir.

(*) Psicanalista, Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre e do Instituto APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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