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25 de setembro de 2018
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10:30

Quando o mal é sustentado pelo discurso cínico de fazer o bem

Por
Sul 21
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Quando o mal é sustentado pelo discurso cínico de fazer o bem
Quando o mal é sustentado pelo discurso cínico de fazer o bem

 

“Há um desafio em encontrar brechas nesses paredões de intolerância e resistir a impostura de soterrar diferenças”. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Norton Cezar Dal Follo da Rosa Jr (*)

 A violência é traumática, excessiva, desmedida. Seus repertórios são múltiplos, muitas vezes, com consequências devastadoras. Neste aspecto, seja através de manifestações silenciosas ou cruentas, possivelmente, cada leitor poderia reconhecer a sua condição de vítima, espectador ou, até mesmo, de agente de um ato violento. Embora, preferimos pensar: violentos são sempre os outros.

Entre tantos exemplos para ilustrar as infinitas formas de materialização da violência, compartilho uma cena vivenciada nos últimos dias. O cenário parecia amistoso, pois se tratava de um salão de beleza, lugar onde as pessoas buscam se sentirem um pouco melhor com a própria imagem. Eu estava enganado, tão logo entrei, antes de sentar na cadeira para cortar o cabelo, o rapaz simpático, como sempre foi, pergunta-me: já sabes em quem votar?

Ainda de sobressalto com a interpelação inesperada naquele contexto, logo pensei, vou ficar quieto, afinal, esse tipo de diálogo tem produzido tantos estragos e, além do mais, não quero me incomodar, preciso apenas cortar o cabelo. Ao ver o meu silêncio ele diz: – “Tu és um indeciso. Certa vez, li uma reportagem que os menos instruídos deixavam para última hora para escolher o seu candidato. Agora vou te mostrar uma foto e ela não deixará dúvidas em quem votar”. Então, ele saca o celular do bolso como se fosse uma arma e mostra-me uma imagem com cinco covas abertas num miserável chão batido, com a seguinte mensagem: “Projeto minha casa minha vida para bandido: versão mito”. Como se não bastasse, mencionou – “Se tu queres mudança, esse é o caminho”.

Vejam só, a brilhante saída reiterando a máxima perversa: “bandido bom é bandido morto”. Enquanto psicanalistas, sabemos que cada sociedade produz os mitos que merece, assim como, o quanto uma nação devastada de esperança é propícia para o surgimento de ditadores capazes de propagar o ódio, alienar massas e fomentar uma espécie de solução final para os nossos problemas. # O BRASIL NÃO MERECE ISSO.

Fiquei estupefato com a racionalidade violenta implícita naquelas imagens expostas para não deixar dúvidas. No discurso totalitário não há espaço para equivocação, dialética, diferença, metáfora. Sua linguagem é cruel e rasteira. Por isso, é preciso reconhecer a lógica ordenadora desse absurdo, ainda que a alienação desse cidadão não lhe permita constatar a perversão implícita na sua proposição, pois ele aponta um caminho inexistente. Assim, apesar de meu interlocutor se mostrar cinicamente protetivo, mediante o moralismo de fazer o suposto bem aos outros, ele também é responsável pela disseminação do mal. Suas palavras cavam uma cova na qual estamos todos incluídos. Logo, seria ingenuidade acreditar que este seria o destino apenas para bandidos.

Após o longo silêncio, eu poderia ter dito: provavelmente haverá loteamentos específicos para índios, negros, homossexuais, travestis, albinos, mendigos, artistas, psicanalistas, feministas, cabeleireiros, brancos de olhos azuis não legítimos… Diante dessa observação, talvez ele iria esboçar um sorrisinho amarelo e o silêncio, novamente, ergueria um muro entre nós. Este é o lado bom de viver numa democracia (em frangalhos), ou seja, o fato das pessoas poderem dizer aquilo que pensam, sem serem caçadas, torturadas e assassinadas em covas desaparecidas diante da omissão do Estado em relação às atrocidades ocorridas em nosso país em tempos sombrios. Mas, confesso, não consegui fazer isso, o desânimo me paralisou. Este quase texto será a minha resposta.

As covas estampadas naquela fotografia nunca foram novas no Brasil; ao contrário, elas são a expressão daquilo que há de mais arcaico em nossa história. Então, como lidar com a tirania diante do gozo de extermínio do outro em nome do bem? Trata-se de uma questão complexa e não terei a pretensão de respondê-la, mas bandidagens moralistas, certamente, não irão nos ajudar a avançar diante do problema da criminalidade. Não podemos esquecer: execução, felizmente, ainda é crime nesse país.

Em tempos de radicalidade, erguer muros é tentador. Além do sujeito se proteger de possíveis ameaças, ele pode garantir a ilusão de pertencer ao lado supostamente mais digno. Entretanto, apresentar covas como um recurso para lidar com o outro é tragicamente perverso. Neste sentido, há um desafio em encontrar brechas nesses paredões de intolerância e resistir a impostura de soterrar diferenças.

Portanto, os supostos homens de bem, movidos pela sede de justiça com as próprias mãos, pervertem a lei e passam a legislar em causa própria, tornando-se os fiéis representantes do mal que dizem combater.

(*) Psicanalista, Membro da APPOA e Instituto APPOA, Doutor em Psicologia Social e Institucional – UFRGS.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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