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11 de setembro de 2018
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10:40

Mary Shelley 2018 e Frankenstein – 200 anos

Por
Sul 21
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Boris Karloff no filme de 1931. (Reprodução)

Lucia Serrano Pereira (*)

Frankenstein faz 200 anos, ficção que compõe nosso imaginário desde sempre, com a estética gótica entre o romantismo e o horror.. Certo que sua imagem predominante ao longo das décadas tem sido a de Boris Karloff no filme de 1931. De repente, me dei conta de que este conhecido tão próximo vinha antes pelo cinema (versões afora, até a hilária de Mel Brooks) do que pelo texto.

Mas então, o livro foi publicado em 1818, de forma anônima. Não por escolha de Mary Shelley, acontece que os editores não aceitaram sua autoria; jovem de 18 anos, incredulidade talvez pela idade, pelo sexo, ou por ambos na Londres da época. Para que a história pudesse vir a público precisou que Percy Shelley, seu marido, que já era um poeta de certo reconhecimento, assinasse a apresentação do livro, e foi isso.

De novo o cinema: assisti recentemente o “Mary Shelley” (2018), com direção de Haifaa al-Mansour, primeira mulher a dirigir filmes na Arábia Saudita, e que já ganha expressão internacional com seu trabalho. Belo filme, reconstituição de época, ritmo de narrativa forte. Gostei em especial da forma pela qual a diretora dispôs os elementos, os traços que incidiram em sua composição. Ela escolhe fazer uma “ficção de origem” de Frankenstein entretecendo com Mary Shelley, sua vida. Ok, já que romance, vem o que se busca na vida do autor, mas sabemos do delicado desse caminho… Mas a direção vai adiante buscando o contexto, o que se engendra nos discursos da época, os conflitos, os anseios, as fantasias no imaginário social, e o filme vai ganhando corpo e complexidade.

Cria, ao modo de toda boa novela, o relato de como a coisa vai se avolumando até Frankenstein ser transbordado, extravasado no papel (parafraseando Pessoa com seus outros).

Ora, sabemos que o que concerne à origem é sempre, em alguma medida, ficcional. Há um insondável que não se tem como recobrir com fatos ou palavras. Justo neste lugar surge o ficcionar como possibilidade de dizer, a partir ou por volta desta zona movediça. Com isso nos viramos, sintomatizamos, produzimos, criamos possibilidades e aberturas.

O filme faz um mise-en-abyme, a ficção (a história do livro em elaboração) dentro do filme ( ele mesmo a ficção dessa história ). Quais as peças que Haifaa escolhe para o jogo?

A diretora vai pontuando com dados biográficos: Mary Shelley perde a mãe poucos dias depois de nascer. É filha de intelectuais reconhecidos como radicais, mas que também encontraram seus limites na prática da vida. William Goldwin, o viúvo, casa novamente mas a relação da madrasta com a menina é difícil. De pequena, as visitas ao túmulo da mãe, os passeios pelo cemitério como lugar de calma. O gosto especial pelas histórias de fantasmas, perpassando a pergunta entre as crianças sobre se os mortos podem retornar ao mundo dos vivos, seria possível? Isso vai perto da puberdade, bem quando acontece a mudança de mundos, a migração da infância para a adolescência; não raro é aí que se tenta desvendar o mistério de “outro mundo”. Esboços de escritas. A saída de casa aos 16 anos para morar com Percy Shelley, que ainda era casado. Isso foi grande motivo de escândalo e de rupturas.

Vida dura, o jovem casal tem um bebê que não resiste e morre com apenas duas semanas.

Agora o livro, outra aventura, o texto, as palavras do editor e mesmo de Mary Shelley, em suas aberturas.

Na edição inglesa de Frankenstein o editor Siv Jansson inclui fragmentos dos diários de Mary, tudo muito perto, perda, luto, inicio da escrita. “Sonhei que meu pequeno bebê tornou à vida novamente; que tinha apenas estado frio, e que nós a friccionamos perto da lareira, e ela viveu. Acordada, e sem encontrar o bebê. Eu penso na pequena (the little thing) todo o dia. “Not in good spirits“. Mary fica devastada com a perda, nesses tempos que se seguem.
O ano seguinte é o do famoso verão na casa de Lord Byron onde, entediados pelas chuvas ao longo de dias e dias, Byron propõe o desafio: cada um deve escrever uma ghost story. Mary Shelley diz que vai se ocupar disto: pensar uma história. Enfrentava a cada manhã a pergunta dos outros três. Já tinha uma história? Mortificada, nada ainda.

Mas sim, ao mesmo tempo registra as imagens que iam surgindo, fragmentos da Criatura.

Contava com o desejo de que o tema tivesse a ver com falar do medo misterioso de nossa natureza, e que a história pudesse gelar o sangue e fazer o coração acelerar. Refere como importante as longas conversas entre eles durante toda a temporada – a natureza dos princípios da vida, se haveria algum dia a possibilidade disso ser descoberto; também os experimentos do Dr. Darwin explorando a condição criativa e de regeneração dos processos da natureza.

Entram neste contexto as proposições do químico Davy, que afirmava o poder da química sublinhando e podendo intervir sobre os processos vitais, modificando-os; e principalmente as teses de Luigi Galvani, em voga na época, com a revivificação de tecido morto, a experimentação de “eletricidade animal”, que era substancialmente produzida pelo cérebro e conduzida aos músculos e outros órgãos através dos nervos. Com isso talvez um cadáver pudesse ser reanimado.

Siv Jansson marca bem a mitologia que se criou em torno de Frankenstein a partir do gosto de Mary pelas histórias de fantasmas, ou pela ênfase na sua biografia, o que ele refuta: Mary Shelley lidou com um conjunto de ideias científicas, filosóficas e políticas em seu livro que desafiam as interpretações simplistas.

Verdade. O debate no social entre a organização da Ciência e o saber. Frankenstein é sobre não deixar o saber que envolve a experiência da vida e do sujeito ficar separado do progresso científico e de seu uso. Também o questionamento das instâncias de autoridade; a experiência de opressão e de marginalização no social, os abandonos, algumas barreiras intransponíveis mantidas invisíveis ou naturalizadas.

A Criatura é como uma criança que fica no desamparo, sem nome, sem cuidados, também na ignorância, e precisa descobrir o que precisa, e como fazer para sobreviver. Sem Outro para fazer a função.

Victor, por outro lado, tem a ambição do Criador absoluto, talvez até de criar uma “raça”: é bem sucedido do lado da ciência. Mas falha do lado de qualquer fio de “paternidade” ficcional, pois não vai cuidar nem olhar pela cria. Anima, mas não faz o principal, tomar a responsabilidade. E assim vai se engendrando a figura do monstro/ personagem trágico de Mary Shelley.

O título do livro, lendo mais de perto, é “Frankenstein or the Modern Prometheus“. De Prometeu temos duas versões, ambas servem à Shelley. Conhecemos bem a versão de Prometeu como o que rouba o segredo do fogo dos deuses para entregá-lo aos homens, recebendo o castigo eterno. A outra versão, Prometeu em Ovídio, nas Metamorfoses: ele é aquele que tenta animar um homem de barro.

A epígrafe do livro é citação de Paraíso Perdido, de Mílton.

Did I request thee, Maker, from my clay
To mould Me man? Did I solicit thee
From darkness to promote me?

Por acaso eu lhe pedi, Criador, que a partir do meu barro me moldasses homem? Lhe clamei que me elevasses da escuridão? (livre tradução)

Mary Shelley pode por fim assinar seu livro na segunda edição, em 1923, Frankenstein já tendo produzido forte ressonância. O mundo já não era mais o mesmo depois dele.

(*) Lucia Serrano Pereira é psicanalista, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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