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7 de agosto de 2018
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10:23

“Se essa rua, se essa rua fosse minha…”

Por
Sul 21
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“Se essa rua, se essa rua fosse minha…”
“Se essa rua, se essa rua fosse minha…”
Moradores em situação de rua foram expulsos do viaduto da Borges de Medeiros. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

Sandra Djambolakdjian Torossian (*)

Porto Alegre, bairro Rio Branco, classe média. Uma família arruma sua casa com muito cuidado, organiza os móveis, a decoração, os vasos, as flores. Dispõe as obras de arte cada dia num lugar, o quadro, réplica do grito de Munch fica ancorado no jardim, e pode ser apreciado por quem passa pela rua. Um manequim – arte conceitual – vestido com calça justa é colocado em lugar estratégico como que olhando os carros passarem.

A família incomoda os moradores do bairro, os táxis e uber que por ali circulam. O motivo dessa incomodação é o local escolhido para fazer sua morada. O canteiro do meio da grande avenida. Sem paredes. Tendo como único teto o céu aberto.

Curioso pensar que quando o mesmo canteiro é utilizado para confraternizar com churrascos mensalmente organizados, há só elogios e nenhuma incomodação.

Na mesma cidade, num terreno abandonado há 10 anos, perto da Câmara de Vereadores e dos tribunais da cidade, uma comunidade organizou sua moradia. Batizada como Ocupação da Aldeia foi a primeira ocupação realizada pelo Movimento da população de Rua. Ocupação de um terreno, de um espaço abandonado.

Rapidamente forma expropriados com ação de reapropriação da posse.

O viaduto da Borges de Medeiros, avenida no centro da cidade, é também um local escolhido por quem não tem outro espaço do que a rua para fazer sua moradia. Há poucos dias, mais uma vez, uma ação comandada pela Brigada Militar expulsou os moradores,  retirando e destruindo  todos os pertences.

O responsável por essa operação declara em público que ali não tinha pessoas, só ladrões e traficantes.

Ecoa na minha lembrança a letra e a melodia da minha adolescência: dónde va la gente cuando llueve?

O desprezo pela diferença, as políticas de ódio que vem sendo geradas historicamente com herança escravocrata, a favor do capitalismo financeiro dão sustentação a essa guerra. Exclua-se quem não está na roda do capital. Sem capital não há humanidade.

Afortunadamente movimentos de ruptura dessa lógica emergem da sociedade civil. O Movimento Nacional da População de Rua, atuante há mais de 10 anos no RS organiza-se como coletivo que resiste com muita dificuldade a essa orquestração destrutiva comandada pelos grandes capitais e regida pela grande mídia.

O projeto do jornal Boca de Rua  há muitos anos está nesse movimento de resistência. Mais recentemente o Amada Massa. Projetos aos quais vale a pena apoiar porque vão em favor da humanidade, da produção de laços, do reconhecimento da potência de todos e não somente dos detentores do capital e daqueles que estão à sua volta como marionetes alienados da própria exploração.

Como aprendemos com a psicanálise, aquilo que se exclui, que não se reconhece como próprio, aquilo que foge à implicação de cada um, volta com toda sua força, por outras vias, nem sempre suportáveis, como sofrimento e violência.

Essas ruas, essas ruas… que são nossas, deveriam ser ladrilhadas com crítica, acolhimento e educação. É o único modo de enfrentar a violência (de todos).

(*) Psicanalista. Membro da APPOA.

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.

 


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