Sandra Djambolakdjian Torossian (*)
Porto Alegre, bairro Rio Branco, classe média. Uma família arruma sua casa com muito cuidado, organiza os móveis, a decoração, os vasos, as flores. Dispõe as obras de arte cada dia num lugar, o quadro, réplica do grito de Munch fica ancorado no jardim, e pode ser apreciado por quem passa pela rua. Um manequim – arte conceitual – vestido com calça justa é colocado em lugar estratégico como que olhando os carros passarem.
A família incomoda os moradores do bairro, os táxis e uber que por ali circulam. O motivo dessa incomodação é o local escolhido para fazer sua morada. O canteiro do meio da grande avenida. Sem paredes. Tendo como único teto o céu aberto.
Curioso pensar que quando o mesmo canteiro é utilizado para confraternizar com churrascos mensalmente organizados, há só elogios e nenhuma incomodação.
Na mesma cidade, num terreno abandonado há 10 anos, perto da Câmara de Vereadores e dos tribunais da cidade, uma comunidade organizou sua moradia. Batizada como Ocupação da Aldeia foi a primeira ocupação realizada pelo Movimento da população de Rua. Ocupação de um terreno, de um espaço abandonado.
Rapidamente forma expropriados com ação de reapropriação da posse.
O viaduto da Borges de Medeiros, avenida no centro da cidade, é também um local escolhido por quem não tem outro espaço do que a rua para fazer sua moradia. Há poucos dias, mais uma vez, uma ação comandada pela Brigada Militar expulsou os moradores, retirando e destruindo todos os pertences.
O responsável por essa operação declara em público que ali não tinha pessoas, só ladrões e traficantes.
Ecoa na minha lembrança a letra e a melodia da minha adolescência: dónde va la gente cuando llueve?
O desprezo pela diferença, as políticas de ódio que vem sendo geradas historicamente com herança escravocrata, a favor do capitalismo financeiro dão sustentação a essa guerra. Exclua-se quem não está na roda do capital. Sem capital não há humanidade.
Afortunadamente movimentos de ruptura dessa lógica emergem da sociedade civil. O Movimento Nacional da População de Rua, atuante há mais de 10 anos no RS organiza-se como coletivo que resiste com muita dificuldade a essa orquestração destrutiva comandada pelos grandes capitais e regida pela grande mídia.
O projeto do jornal Boca de Rua há muitos anos está nesse movimento de resistência. Mais recentemente o Amada Massa. Projetos aos quais vale a pena apoiar porque vão em favor da humanidade, da produção de laços, do reconhecimento da potência de todos e não somente dos detentores do capital e daqueles que estão à sua volta como marionetes alienados da própria exploração.
Como aprendemos com a psicanálise, aquilo que se exclui, que não se reconhece como próprio, aquilo que foge à implicação de cada um, volta com toda sua força, por outras vias, nem sempre suportáveis, como sofrimento e violência.
Essas ruas, essas ruas… que são nossas, deveriam ser ladrilhadas com crítica, acolhimento e educação. É o único modo de enfrentar a violência (de todos).
(*) Psicanalista. Membro da APPOA.
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