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28 de agosto de 2018
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10:50

Entre o mofo e os morangos

Por
Sul 21
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Entre o mofo e os morangos
Entre o mofo e os morangos
Através dos contos de Caio Fernando Abreu, “é possível observar os rastros do passado recente que seguem a ressoar no presente”. (Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21)

Gerson Smiech Pinho (*)

Se as amizades costumam circunscrever laços significativos, aquelas tecidas na adolescência tendem a suplantar em relevo e importância qualquer outro período da vida. É entre os pares que os adolescentes compõem ensaios e experiências cujas impressões deixam rastros que marcam toda a existência. Herdeiros dos investimentos amorosos endereçados à família na infância, os laços entre os integrantes de um grupo de adolescentes organizam um espaço por onde circulam ideias, afetos e diversos objetos.

Quando adolescente, dentre os objetos que eu costumava fazer circular entre meus amigos, os livros tinham um lugar bastante especial. Acredito que não só porque gostávamos de ler, mas sobretudo porque a leitura posteriormente nos possibilitava falar. A palavra circulava tanto através da matéria escrita dos livros que trocávamos, quanto pelas conversas entabuladas na sequência.

Foi através de um grande amigo da adolescência que eu tive o primeiro contato com a obra de Caio Fernando Abreu, lá pelos quinze ou dezesseis anos. O livro de contos “Morangos Mofados”, recém publicado àquela época, chegou até mim emprestado por este que era um colega de aula. A captura pela leitura foi tanta que decidi adquirir meu próprio exemplar, revisitado e relido algumas vezes durante os anos de juventude.

Ao reencontrá-lo agora, como parte do recém publicado “Contos completos – Caio Fernando Abreu” (Companhia das Letras, 2018) fiquei me perguntando se certos livros também podem ter a função de companheiros, não só na adolescência, mas em diversos momentos de nossas vidas. A nova edição dos “Contos completos” reúne os textos do escritor gaúcho entre as décadas de 70 e 90, incluindo dez textos avulsos, sendo três inéditos em livro. O volume conta ainda com três posfácios que comentam a obra do autor.

A identificação com o texto de Caio, no momento da adolescência, não foi ao acaso. A escrita do autor atravessa questões que fazem eco à travessia daquele período da vida e ao trânsito para o início da vida adulta. Os personagens de seus contos estão imersos em indagações sobre a existência, a vida, a morte, a passagem do tempo, a solidão, o sonho, o delírio e a loucura.

Além disso, os livros de Caio, em seu conjunto, estampam elementos específicos do período entre os anos 70 e 80, tempos da ditadura militar e da abertura política que se seguiu a ela. Geração que viveu um intenso desejo de mudança, de “cair fora” da sociedade e dos costumes tradicionais, apostando na contracultura, assim como experimentou uma gradual desilusão em relação a esse projeto. Os personagens dos contos de Caio habitam esse tempo, as expectativas e os efeitos dessa aventura.

Ao revisitar o processo de escrita de “O ovo apunhalado”, publicado em 1975, o autor refere que seu livro foi produzido em tempos de “lindos sonhos dourados e negra repressão”. E acrescenta: “este Ovo talvez sirva ainda como depoimento sobre o que se passava no fundo dos pobres corações e mentes daquele tempo”. (P. 120).

Alguns de seus escritos não deixam de revelar certa perplexidade frente à queda de um sonho. Como no conto “Os sobreviventes”, de “Morangos Mofados”, em que dois personagens trocam as seguintes palavras:

…”te desejo uma fé enorme em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia, me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez, que leve para longe da minha boca este gosto podre de fracasso, …” (p. 324)

Caio pode ser considerado como um autor que retrata e questiona a experiência de sua geração. Seus personagens são representantes do espírito daquele período, afetados pela desilusão que sucedeu aos anos de chumbo da ditadura militar. Através de seus contos, é possível observar os rastros do passado recente que seguem a ressoar no presente. E, tomando o título de um de seus livros, perguntar quais sabores restam possíveis para além do mofo que tomou conta dos morangos.

(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat

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As opiniões emitidas nos artigos publicados no espaço de opinião expressam a posição de seu autor e não necessariamente representam o pensamento editorial do Sul21.


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